No passado domingo comprei, creio que pela última vez nos próximos anos, a edição em papel do jornal Público. Depois de a ter folheado por três ou quatro vezes não encontrei referência alguma às manifestações que a CGTP-IN organizou em dezoito capitais de distrito. A opção de não incluir qualquer notícia sobre as acções de luta da CGTP-IN é em si mesma uma expressão da forma como o Público olha hoje o país e o mundo que pretende analisar, quer sob a forma de notías, quer sob a forma de artigos de opinião.
Foi aliás no caderno P2 que encontrei um artigo todo ele exemplar no que se refere à arte de bem demonizar (com palavravinhas brandas e frases aparentemente objectivas e desalinhadas) um país e a sua história. O alvo não poderia ser no contexto actual outro que não a Rússia. Refiro-me à peça “Mapas e Identidades” (texto e mapas), assinado por Jorge Almeida Fernandes, um artigo que pretende lançar um olhar sobre os desafios que se colocam à Europa partindo de uma análise das alterações políticas – com reflexo geográfico – ocorridas desde o final dos anos 80. O texto de Jorge Almeida Fernandes não é particularmente original. Nada do que o autor escreve não foi já escrito vezes demais para ainda parecer novidade. Ideias e formulações velhas e gastas, como as ideias que as sustentam. E se assim é porque razão lhe dedico um post no Manifesto 74?
A demonização da Rússia, aliada a uma tentativa de a isolar na cena internacional (no que respeita à percepção pública reelaborada a partir dos preconceitos anti-soviéticos durante décadas e décadas cultivados na Europa ocidental), é de facto narrativa antiga e repisada. O que acontece é que, agora como provavelmente nunca antes desde 1991, a estratégia ultrapassa largamente um conflito que opunha “apenas” os EUA à Rússia, ou a NATO à Rússia, alargando-se ao confronto evidente (e cada vez mais agressivo) entre a tentativa “ocidental” de manter um mundo unipolar, fundamentalmente centrado no Atlântico norte, e um visão do mundo multipolar que resgaste vastos territórios do efeito gravitacional exercido pelos epicentos da finança internacional.
A acompanhar “Mapas e Identidades” surge por exemplo uma ilustração que compara a Europa de 1990 com a de 2015. A legenda divide os mapas em duas opções fundamentais: países “pertencentes à União Europeia” e “Rússia e países aliados”. Sem surpresa, os aliados da Rússia desaparecem por completo entre o mapa de cima e o outro de baixo, assim sugerindo não apenas o “empurrão” que a “aliança ocidental” deu à Rússia, “empurrando-a para leste”, mas por fim a ideia de que a Rússia se encontra hoje totalmente isolada.
É naturalmente verdade que após 1990 vários acontecimentos ocorreram que mudaram bastante a geografia e a realidade política da Europa. Vários países que antes de 1991 tinham na URSS o seu principal parceiro político, militar, diplomático e económico passaram a integrar a União Europeia e a NATO, numa clara violação de compromissos assumidos pelo “ocidente” com as irresponsáveis autoridades soviéticas daquele início de década de 90. O que de facto não é de todo verdade é a ideia de que a Rússia se encontra isolada e sem “aliados” na Europa de 2015. Senão vejamos: existem laços de natureza vária entre a Rússia e a Sérvia que a “objectividade” do mapa ignora; existe, desde 2010, uma união transfronteiriça entre a Rússia e quatro países da ex-URSS, dois dos quais são tão europeus como Portugal – refiro-me à Bielorrússia e à Arménia; a Rússia é também país membro (e creio que fundador) da Organização para a Cooperação de Xangai, um espaço de cooperação (incluindo militar) que importa não olvidar nem subvalorizar, que tem na Rússia e na China os seus países mais relevantes, mas que inclui ainda nações de grande dimensão, como são a Índia e, ainda que com carácter de observador, a Túrquia (que é simultaneamente membro da NATO embora não da União Europeia); por fim é igualmente importante notar que vários países da União Europeia (e da sua esfera de influência directa) são tradicionais parceiros da Rússia: Finlândia, Chipre, Grécia, Bulgária e a própria Ucrânia.
Pode naturalmente o autor do artigo referir que “Moscovo tem um desígnio imperial e quer recuperar a tutela dos vizinhos”. Ao fazê-lo está a abandonar o campo do jornalismo e a embrenhar-se no domínio do debate político de natureza subjectiva, o que não tem nada de criticável desde que claramente assumido. De resto tenho a mesmíssima legitimidade para afirmar, em oposição ao que escreve Jorge Almeida Fernandes, que Berlim retomou desde há muito o projecto imperial duas vezes derrotado pelas armas, utilizando como escudo e cortina de fumo uma União Europeia que é desunião de facto. E que a Rússia – por todos os lados cercada por países da NATO ou países onde existem bases militares da NATO, alguns dos quais com armas nucleares prontas a disparar – tem não apenas o direito mas também o dever de se proteger.
post-scriptum: O mapa de 1990 incui um pontinho azul em território da RDA, pormenor que me parece pretender representar a cidade de Berlim Ocidental. Trata-se de um equívoco comum, pensar-se que Berlim Ocidental era território da RFA. Na verdade não era. O mapa está errado.