Marcelo, o moralista selectivo

Nacional

Marcelo, o político pós-político, tem dedicado boa parte da sua asfixiante presidência à proclamação de princípios gerais de uma ética redonda, com a qual todos (ou quase todos) estarão de acordo. Nas recentes comemorações do 5 de Outubro, retomadas depois de alguns anos de interrupção reaccionária, Marcelo optou por enviar recados à chamada “classe política”, expressão mediática que procura meter no mesmo saco pessoas e organizações que na prática quotidiana não apenas representam ideias e comportamentos distintos, como o fazem em defesa de projectos políticos muito diferentes. Ora, o que Marcelo disse não levanta grandes objecções em praticamente nenhum sector da sociedade portuguesa. E por isso, o problema não é o que disse, mas antes o que fez e faz.

Quando em Janeiro de 2014 o ex-ministro do PSD José Luís Arnaut recebeu do Goldman Sachs o reconhecimento da sua “competência”, depois de vários anos de participação activa em decisões políticas ao mais alto nível institucional, Marcelo – então comentador televisivo na TVI – afirmou  que “José Luís Arnaut esteve em todas as privatizações do lado do Estado vendedor e do lado dos privados interessados, portanto a lógica da Goldman Sachs, que já disse que vai apostar em Portugal, é escolher alguém que acham que está muito bem metido no domínio das privatizações. Por outro lado é um dirigente do partido, é presidente da comissão de fiscalização de contas do PSD, portanto tem peso no partido, que por sua vez tem peso no Governo. Dir-me-á que é uma mistura entre poder económico e político. Mas esses bancos quando escolhem algumas figuras, ex-governadores, ex-ministros…, são pessoas que lá estão porque os bancos pensam que podem abrir portas ou pelo menos esclarecer o que se passa nesses países“.

Dois anos depois foi a vez do ex-primeiro-ministro e ex-presidente da Comissão Europeia ser chamado à estrutura do Goldman Sachs, também como reconhecimento da sua “competência” e “sabedoria” acumulada ao longo de vários anos em funções de elevada responsabilidade e considerável poder, tanto em Portugal (o país onde, segundo comentador Marcelo, o Goldman Sachs “vai apostar”) como na estrutura burocrática da “União Europeia”. Marcelo, entretanto eleito Presidente da República, faz meia pirueta sem mortal mas encarpada, e afirma, orgulhoso, que “no caso do doutor Durão Barroso, trata-se de atingir o topo da vida empresarial. E o topo da vida empresarial tem muito mérito, como tem o atingir o topo na ciência, na universidade, na cultura, nas artes. Portanto, deve ser naturalmente reconhecido“; “o Presidente da República gosta de ver portugueses reconhecidos em lugares cimeiros dos vários domínios da atividade profissional, cívica, cultural. E temos de admitir que é um lugar de topo na vida empresarial mundial. Não tenho mais nada a comentar“.

Dir-se-á que o Marcelo comentador não tem as responsabilidades institucionais do Marcelo presidente quase-rei. Mas essa é precisamente a razão que torna incompreensível a contradição evidente entre as posturas adoptadas por uma mesma pessoa, num curto período de tempo. A prática é de facto o critério da verdade, e se a letra do discurso aponta o dedo a todos (sem distinção) – o que de resto não surpreende, antes reforça o longo histórico de intervenções populistas do ex-comentador televisivo -, a prática concreta absolve sem pingo de vergonha nem constrangimento um ex-correlegionário do PSD e uma figura menor da história de Portugal, maior apenas no impacto profundamente negativo que teve (e tem) não apenas na vida quotidiana do povo português como também na sempre presente colagem do Estado português à completa destruição de qualquer noção de estabilidade, paz, segurança e desenvolvimento no Médio Oriente.

O que Marcelo fez, ao caucionar e valorizar o ingresso de um ex-primeiro-ministro e ex-presidente da Comissão Europeia para um banco que, segundo próprio Marcelo, tem revelado interesse em “apostar” em Portugal, foi reconhecer a legitimidade política dos oligopólios internacionais para através de jogadas que ferem de morte a réstia de democracia existente ameaçarem os povos e em particular o povo português.

post-scriptum: não menos grave foi a posição adoptada pelo governo português.