Marionetas primárias

Nacional

O teatro de marionetes é uma arte fantástica, quer do ponto de vista da sua fruição, quer do ponto de vista das diversas técnicas que envolve. Na verdade, o teatro de marionetas é uma forma de expressão que envolve diversas outras, desde o fabrico das magníficas peças que constituem visualmente a personagem – a marioneta – à manipulação da personagem e, muitas vezes, à interpretação de vários papéis pelo mesmo manipulador. Quando o pano abre, o espectador nunca sabe sequer quantas pessoas estão na verdade envolvidas na produção e execução de cada peça, mas antecipa um certo deslumbramento com a habitual escuridão que envolve o pequeno palco.

E é provalvemente na arte ocidental de marionetas – já que o bunraku é tão diferente e tão mais explícito – que boa parte das manobras dos poderosos se inspiram para assegurar o fascínio das massas. A técnica capitalista não é menos complexa que a dos manipuladores de marionetas, mas à do capitalismo acresce um objectivo que não é o da arte: usando as técnicas do “titeritero” o capital entorpece ao invés de emancipar. Apesar de ardilosa, a técnica começa a ser demasiado repetitiva e evidente. Alguma atenção denuncia com clareza o que a escuridão tenta esconder. Já a vimos com Soares, com Cavaco, com Portas, com Sócrates e agora com Costa. As primárias do PS são uma farsa de marionetas, como foi uma obra de arte de fazedores de marionetas a criação das figuras envolvidas.

Aqui o criador da marioneta é um colégio de ideólogos a soldo que estuda o marketing e introduz no boneco as características necessárias para que o espectador simpatize com a figura, independentemente de conhecer o carácter da personagem e muito menos o carácter dos materiais utilizados na construção do títere.

O manipulador da marioneta é o hábil capital, representado especialmente pelos grupos económicos, atendendo às divergências entre os próprios e escrevendo a peça à medida que se desenrola, mudando de títere sempre que necessário para manter o espectador convencido da qualidade e da veracidade do que vê e ouve.

A luz de palco e a escuridão envolvente são a comunicação social dominante que ilumina o palco, e obscurece a sala onde os espectadores se amontoam e onde lhes distribuem as pipocas. Quem detém o controlo dos interruptores é, como sabemos, o encenador que, para o caso é o mesmo que controla os títeres ao longo da farsa.

A farsa teatral – cumprindo o papel que a arte sempre cumpre – dá ao espectador a capacidade e os elementos para compreender as críticas e as artimanhaas que o conteúdo denuncia pela sátira e pela caricatura. Já a farsa política, infelizmente, com o papel diametralmente oposto ao da arte, faz precisamente o oposto, escondendo a realidade e mostrando a personagem como real, evitando a sua caricaturização e caricaturizando apenas os que teimam em acender as luzes para mostrar a todos que cada títere tem um manipulador e que nenhum pensa por si.

Já a trama, essa, vai sendo cada vez mais óbvia: o títere seduz, o títere trai, arranja-se outro; o outro seduz, o outro trai, arranja-se ainda outro e por aí fora.

Juntamos a essa fórmula, uma infindável maquinaria de produção de bonecos, em plástico, em madeira, em carne e osso, o que for preciso e uma grande alfaiataria onde se produzem os adereços em várias cores, rosa, laranja, azul e amarelo, até mesmo, por vezes, em tons de vermelho.

As primárias do PS foram uma inovação para o teatro de marionetas português, apesar de velha técnica por outras paragens, nomeadamente na terra das marionetas, perdão, da liberdade. E eis que a farsa envolve de tal forma o espectador que o próprio chega quase a palpar a capacidade de escolher a marioneta, apesar de nunca lhe ter sequer chegado perto.

As primárias do PS contrapõem, para limpar depois de Sócrates a imagem do Partido, dois homens de plástico, criados no sistema político corrompido e apodrecido, treinados para boas marionetas dos grandes grupos económicos. Mas é verdade e o caso bem o demonstra, que há marionetas mais capazes de seduzir o público do que outras, principalmente pelo esforço de caracterização e pela forma como lhes incide a luz de palco do que pelas diferenças efectivas entre si que, sendo títeres, não vão além das de superfície.

Depois de Durão, Santana e Portas seria impensável reconhecer nessas figuras capacidade para cativar as massas e surge um novo títere, vindo da mesma fornada que produziu marionetas a eito para diversos palcos do mundo, vestindo de igual, falando igual. Sócrates era a salvação e a esquerda, uma certa esperança de modernidade de esquerda capitalizou um descontentamento fulgurante com o aterior elenco. Depois de Sócrates, uma figura de igual calibre, da mesma escola, mas menos habilidosa é promovida rapidamente de marioneta substituta a marioneta de serviço permanente – o “titeritero” não podia permitir que as massas se apercebessem das semelhanças entre o laranja e o rosa tão rapidamente que isso influenciasse a escolha do voto. E o mesmo se verifica agora: na desilusão – ou mesmo ódio e repulsa – que os portugueses sentem pelo laranja e seus títeres, urge alinhar na caixa de marionetas substitutas uma capaz de seduzir – apenas pelo tempo necessário – o público.

O tempo necssário é o que vai de hoje às próximas eleições.