“Medo e Revolução” por João Viana

Nacional

A minha amiga Lúcia Gomes pede-me um texto e, em troca, dá-me liberdade para o escrever. Aceito a medo. Nas últimas comemorações do 25 de abril, ao olhar para um grupo que desce a avenida ostentado um cartaz onde se lê CORAGEM, dá-se o click. Vou falar-vos sobre o medo e também sobre revolução.

A forma como o medo pode durar e durar até perder-se nos tempos, mas também a forma como num simples piscar de olho o medo pode ir-se embora, dando lugar a uma revolução de criatividade, felicidade, progresso e tudo o mais que se quer da vida…. Há muito, muito tempo, lá na minha terra, em África, isto de que vos vou falar aconteceu.

O medo existia e estava instalado. Já ninguém se lembrava da forma como tinha surgido e ficado. Ao que parece, contam os nossos mais velhos, o medo apareceu há muitas centenas de milhar de anos. É tão antigo como o Homem. Ou ainda mais. Há um milhão de anos, talvez mesmo dois (é inacreditável a idade do medo, não é?) viviam na minha terra uns grupelhos de hominídeos baixinhos e enfezados, que teriam cerca de 1 metro e 30 de altura, pouco mais, e que passavam a vida em ridículos bandos de cinco indivíduos ou menos, junto aos lagos e rios, onde a água nunca seca. Parece estúpido porque é sabido que junto à água se junta toda a espécie de predadores, dos mais comuns aos mais temíveis e que a vida não deve ser nada fácil para estes pequenos seres, tão nervosos como os símios, mais espertos do que eles, mas ainda longe, longe, de serem Homens e Mulheres. Alimentam-se de animais ainda menores do que eles e tremelicam entre a fuga e o sobressalto. Quando não fogem, agarram-se a pedras, não vá o diabo tecê-las, e batem com elas, umas nas outras, fazendo toc-toc-toc, e um dia farão os primeiros utensílios de que há memória: primeiro pedras com aresta cortante, depois, muito mais tarde, com duas arestas, as chamadas bifaces, das quais as mais surpreendentes terminam numa ponta tosca. Também se servem de machadinhos de pedra e raspadores.

É a minúcia da sobrevivência agarrada ao pouco que sobra para comer. Todo o resto é breu e um pegajoso medo que se enterra fundo no cérebro, tão profundo como uma noite escura e ao que tudo indica… para sempre nos nossos bébés! Não longe dali, sempre em África, com os glaciares a dominarem na Europa, descobre-se o fogo. Terá sido há uns 60 000 anos, talvez. É um grande contributo para vencer o medo, e cozinhar a carne e enganar o frio, mas só por si não basta para conquistar muito ou para criar aquilo que vencer o medo comporta – a revolução… É verdade que está mais frio. Sente-se a glaciação lá longe. Em África, as savanas e as florestas estavam como hoje estamos na Europa – alteradas do clima. O Sara ainda viçoso de plantas e animais começa aos poucos a ser o que é hoje. As densas florestas ficam menos densas e temíveis e os potenciais homens e mulheres desta história aventuram-se com muito, muito medo em busca de cavernas e madeira (para os machadinhos). Esta cultura chamada Sangoense (descoberta na Baía de Sango, no Lago Vitória, no Uganda) dura tanto e espalha-se de tal forma pelo território africano que parece não haver saída para o Homem.

De repente algo acontece na cabeça deste homo sapiens negro, que, em vez de lascar a pedra como sempre fez no passado, a começa a polir e a afiar, afiar, afiar… até esta se transformar em espeto ou melhor em ponta de lança! Sim. A borboleta humana sai do casulo. Agora, não é o homem a fugir dos predadores mas a dar-se ao luxo de esperar por eles. Por todos eles. Sem excepção. – “Venham mais cinco! Cá vos espero!” E cada vez maiores! E gigantescos! Sem temor, com astúcia e admirável coragem o Homem vence o medo! Os utensílios neolíticos afiados e polidinhos matam que se fartam. E com o feito da caça surge o relato! Isto é…a grande ficção.

A caçada admirável contada pelo próprio rapidamente transformado em especialista e em contador de estórias cada vez mais especialista dá lugar a comunidades alargadas de mulheres (veja-se, ainda hoje, o respeito pela Mulher em África) tornadas também especialistas que agora escusam de temer e fugir, mas dedicar-se a educar os filhos e fazer cestaria e olaria, e servir-se dos animais não para os matar, como os homens, mas para os criar e servir-se deles para os trabalhos pesados com as plantas que agora criam porque já não fogem e podem estar num só lugar, aldeia essa onde os homens vindos da caça e da guerra irão governar e fazer Ciência e acumular conhecimento que armazenarão através da escrita. Sim, é inacreditável… mas à Revolução Neolitica seguiu-se o rastilho da invenção da escrita! Recentemente, há 5000 anos, surge a civilização africana… o Egipto dos Faraós! O medo tem centenas de milhar de anos, a coragem menos de 10 000… mas vale a pena, ou será que não?

*Blogger Convidado
João Viana

João Viana nasceu em Angola em 1966, filho de pais portugueses, licenciou-se em Direito, em Coimbra e rumou ao Porto, para estudar cinema (1988 – 1994), mas desde os sete anos sabia que queria fazer Cinema. Passou por produção, som, story-board, realização e chegou ao argumento. Trabalhou com inúmeros cineastas, portugueses e estrangeiros, Paulo Rocha, Schroeter, Manoel de Oliveira, Filipe Rocha, Rob Rombout, João César Monteiro, Biette, entre outros. Em Fevereiro de 2009 cria a a produtora Papaveronoir, para produção de cinema de autor (ficção e documentários de criação), em estreita ligação com Paris e Berlim. “A Piscina” foi a sua primeira curta-metragem a solo. Segue-se-lhe Alfama, “Ó Marquês anda cá abaixo outra vez!”, “A batalha de Tabatô” e “Our Madness”.