Memórias de infância: Angola, Cuba, Mandela

Internacional

Lembro-me de quando cheguei a Portugal, em finais de 1982, a poucos dias de completar os meus oito anos, perguntar a toda a gente com quem é que estávamos em guerra, quem é que os portugueses combatiam. Estranhava a ideia de não viver mais num ambiente de conflito armado. Para mim o estado normal de existência era o da guerra. A guerra é uma dor continuada a que nos habituamos sem nunca deixar de doer, é como um frio que se entranha nos ossos e com que somos obrigados a conviver, e agora é para mim uma memória longínqua da qual sobressaem os episódios mais marcantes.
Não sei se o meu ódio de hoje a explosões tem alguma coisa a ver com memórias conscientes e acontecimentos esquecidos. O facto é que de cada vez que vejo e oiço notícias sobre bombardeamentos imagino-me como uma criança, num cenário de guerra, perdida e assustada com o ruído de explosões que ocupam todo o espaço, que ensurdecem, nos paralisam e nos impedem de gritar.

Mas também me recordo que o estado de guerra não era para mim tão chocante quanto o era para a minha mãe, que a dada altura quase deixou de dormir. Lembro-me por exemplo que um dia, com a minha mãe e o meu irmão, ao cruzarmos um atalho para a escola onde ela dava aulas, fomos apanhados no meio de fogo cruzado entre soldados das FAPLA e cuatchas (UNITA). Ela atirou-nos imediatamente para o chão e ficámos os três deitados, mas eu e o meu irmão levantávamos constantemente as cabeças para ver quem é que estava de um lado e quem é que estava de outro. A minha mãe voltava a espremer-nos contra a terra. Não tínhamos noção do perigo na maior parte das vezes, eu, pequena, provavelmente ainda nem tinha noção da morte.

A nossa escola era um edifício em ruínas, uma boa parte dele tinha desaparecido. Muitas vezes as nossas aulas eram à sombra das árvores, sentados em latas de leite em pó, com os cadernos no colo, um quadro encostado ao tronco e pauzinhos ao alcance da mão que nos ajudavam a fazer as contas. E eu gostava dessas aulas. Todos os dias atravessávamos, com os nossos uniformes de pioneiros, um curto capinzal para lá chegar. Como as ervas eram altas, os miúdos pregavam partidas dando-lhes nós de forma a levar os outros a tropeçar e cair. E a UNITA também minou esse caminho por duas outras vezes. Na última vez, morreu um colega e a minha mãe decidiu que era tempo de virmos para Portugal.

Éramos meninos do Huambo e tal como na canção aprendíamos como se ganha uma bandeira e quanto custou a liberdade. Sabíamos que aquela guerra era ainda de libertação, e com orgulho de libertadores brincávamos aos conflitos armados e todos queríamos ser a União Soviética quando o adversário era os Estados Unido.

Sabíamos que a guerra de libertação não se travava apenas contra a UNITA apoiada pelos Estados Unidos, sabíamos que as forças armadas do regime do Apartheid da África do Sul tinham ocupado a Namíbia e que procuravam entrar no país pelo Cunene e pelo Cuando Cubango, sabíamos que eram aliados da UNITA para derrotar os “comunistas” de Angola. O meu irmão já distinguia de ouvido os aviões mig soviéticos dos mirage. Quando íamos com a minha mãe ao Lubango (a sul do Huambo) já sabíamos que os cortes de electricidade à noite deviam-se aos blackouts. A cidade tornava-se invisível e impedia os ataques da aviação sul-africana.

A rádio passava constantemente o spot: “de Cabinda ao Cunene, um só povo, uma só nação!”

E a televisão, quando começou, noticiava sempre a guerra mostrando os potentes órgãos de Stáline em acção. Ver uma coisa daquelas fazia-nos sentir um pouco mais seguros.

Depois de virmos para Portugal a guerra intensificou-se. Os sul-africanos iam penetrando cada vez mais no território até que em 1987 o governo angolano pediu ajuda aos melhores amigos dos povos africanos, aos cubanos. Desde os tempos da independência, a ajuda cubana consistia essencialmente na presença de médicos, professores e outros quadros técnicos. 15 000 soldados cubanos e bastante material bélico foi enviado para Cuito Cuanavale.

O reforço cubano chegou à região em 5 de Dezembro de 1987. A mesma data em que 26 anos depois vem a falecer Nelson Mandela. Dá-se, a partir daí e até 23 de Março de 1988, a mais longa batalha alguma vez travada na África austral. Este evento obrigou a África do Sul à negociação que veio a dar-se no Cairo e à posterior assinatura, em Dezembro desse ano, do Acordo Tripartido em Nova Iorque. Ficava acordada a desocupação sul-africana da Namíbia e a retirada de tropas do sul de Angola, o fim do Apartheid, consequente libertação dos presos políticos e a retirada dos cubanos de Angola.

Todos os cubanos foram retirados de Angola, incluindo, calcula-se, cerca de 10.000 cadáveres (de soldados que combateram em todo o continente africano desde os anos 60).

Enquanto o governo de Cavaco Silva votava contra a resolução da ONU para a libertação de Mandela, milhares de cubanos morriam pela libertação dos povos africanos. Hoje, dia 6 de Dezembro de 2013, lágrimas de crocodilo são vertidas em toda a imprensa portuguesa, incluindo as de Cavaco Silva e as de Durão Barroso (que ainda há dias lamentava a morte de Margaret Tatcher, que não se cansou de chamar terrorista a Mandela). Ainda não encontrei uma linha que referisse o papel de Cuba.

“Cuito Cuanavale foi a viragem para a luta de libertação do meu continente e de meu povo do flagelo do apartheid”.

Nelson Mandela