Não é propaganda, é literatura, estúpido

Nacional

Esta história é verdadeira, mas eu preferia que não fosse. Aconteceu esta manhã no trabalho, mas eu preferia ter ficado na cama. Já estão a ver, pela feição de pôr a história breve ou pela melancolia sáfara com que já me quis esquivar, que isto não pode ser propaganda. A propaganda é sempre optimista, mas às vezes o coração não deixa e precisamos da literatura. Olhem, senhores da CNE, se duvidas restarem, a protagonista nem sequer é comunista, mas eu suspeito que é só porque não sabe que o é.

Quando piquei o ponto ela estava parada entre o rés-do-chão e o primeiro andar, a meio das escadas, agarrada obliquamente ao corrimão como se atravessasse a corrente do rio agarrada a uma corda. Ainda não tinha vestido a farda. Trocámos os bons dias a que obriga a conveniência social, mas quando eu passei, ela ficou lá, no mesmo sítio, a descansar. Trocámos mais um olhar e ela abanou a cabeça com uma leve expressão de constrangimento.

Só a vi outra vez, horas depois, quando subi as escadas para ir buscar um café. Estava a limpar as mesas e parecia tão mas tão cansada que não tive coragem de lhe disse nada. O que é que se diz a uma mulher que podia ser nossa mãe, que está doente e que tem que limpar a mesa onde comemos? Não se diz nada, tem-se vergonha.

Foi ela que falou primeiro. Quis-se justificar: explicou-me que o problema era só ali as escadas, que de resto fazia o trabalho todo com uma perna às costas, que não custava nada, que fora só desta vez, não fosse eu denunciar ao patrão que a senhora das limpezas parou um bocadinho a meio das escadas. É assim que estamos. Senti mais vergonha.

Acho que só teve a certeza de que podia falar comigo quando eu disse que achava que «eles» podiam pôr ali um elevador. Não sei se podiam, na verdade, mas ela animou-se. Enquanto bebia o café, contou-me, a traço largo, uma história que já deve ter contado a muita gente: que a junta médica disse que ela estava boa para trabalhar, que o marido está acamado e a filha que ainda estuda, quer ir para turismo.

Eu ouvi tudo e não disse quase nada. Disse-me que isto nunca esteve assim tão mau, que já não sabe de onde é que lhe cortam o salário, mas que quando teve que escolher entre comprar comida e pagar a propina da filha é que percebeu que estamos a «voltar ao antigamente». Também me disse, e eu ouvi, sem saber o que dizer porque não sou nem advogado nem rico nem posso bater em ninguém, que às vezes sai do trabalho e chora, porque, e repetiu, já teve de escolher entre comer e pagar a propina da filha. E depois disse-me isto, sem me conhecer, sem hesitações, sem uma pontinha de medo nos olhos, sem sequer adivinhar que o meu coração está abaixo e à esquerda. Disse-me que desta vez vai «votar no Jerónimo» porque, «apesar de tudo, ainda sabe pensar».