Não, não somos todos Charlie Hebdo.

Internacional

O título deste post pode ser mal compreendido, e por isso importa desde já clarificar o seu sentido: não me passa ao lado que a expressão “je sui Charlie”, ou “eu sou Charlie”, tem um significado associado à solidariedade de quem a usa relativamente às vítimas do triste e repugnante acto de violência ocorrido ontem em Paris. Este post não é um ataque à expressão nem a quem a usa. É um convite à reflexão sobre o significado que a mesma tem, para lá do momento durante o qual a sua utilização parece fazer todo o sentido.

Creio sinceramente que a maioria de nós não é “Charlie”. A maioria de nós cultiva o silêncio comprometido, “a minha política é o trabalho”, “os gajos são todos iguais”, “cada um sabe de si”, não faço ondas que a maré pode levantar-se e eu afogo-me. Numa sociedade em que a liberdade de expressão é entendida pela metade – como a liberdade nos e dos media (e mesmo essa…), quase nunca como a liberdade de cada um dizer sempre e em todos os fóruns aquilo que pensa e sente sobre as coisas do mundo -, esta morre (suspende-se, se quiserem) à porta de uma série de instituições. É hoje praticamente dado como adquirido que no local de trabalho não se fala de política; que dentro das empresas onde trabalhamos há assuntos de que não se fala, por “respeitinho” à corporação e/ou simples medo das represálias associadas ao questionamento de regras estúpidas, regulamentos e códigos obsoletos, discrepâncias medievais na distribuição de salários e “regalias”. Somos todos “Charlie” mas apenas quando nos convém. A prova-provada, aquela que nos confronta connosco próprios, acontece por exemplo sempre que furamos uma greve por medo das consequências associadas à participação na dita.

Por isso podemos mudar a nossa foto de perfil no facebook. Podemos usar um cartoon de protesto como capa, partilhar lindas frases lidas por aí sobre democracia e liberdade de expressão… Não há nada de mal nisso, bem pelo contrário. O problema é que se não questionamos a forma como nos posicionamos neste debate sobre a liberdade de expressão, se não alargamos a nossa reflexão sobre o assunto à forma como o poder financeiro mantém ad eternum jornais deficitários que servem de megafone à sua mensagem padronizada, quando simultaneamente asfixia projectos alternativos que muito poderiam contribuir para a diversificação das da informação e das perspectivas críticas sobre a realidade, se não questionamos a auto-censura a que permanentemente nos impomos, ou se não procuramos compreender porque razão partilhamos até à exaustão nas redes sociais notícias fabricadas sem questionar fontes ou a sua credibilidade, então estaremos a desrespeitar a coragem daqueles que ontem morreram às mãos do islamofascismo financeiramente apoiado e militarmente alimentado por muitos daqueles que hoje choram lágrimas hipócritas.

Eu não sou Charlie, mas pode ser que um dia venha a ser. Quando tiver a coragem de assumir, plenamente e sem auto-censuras, sem medo de consequências (custe o que custar), aquilo que penso e sinto sobre as dores do mundo, sobre as dores dos humildes deste mundo.

Não, nós não somos todos Charlie (pode ser que um dia lá cheguemos). Infelizmente para nós, país que leva 38 anos a vergar a sua soberania, a sua liberdade e a sua dignidade aos ditames de oligarcas internos e externos, e que mesmo assim cala a imensa revolta que, em silêncio, alimenta dentro de si.

Não, nós não somos todos Charlie. O editorial do Público (que assumindo a forma desproporcionada como são tratados o atentado de Paris e aquele que no mesmo dia matou cerca de 30 pessoas no Iémen envergonha o jornal, a sua equipa e os muitos – bons – profissionais que por lá passaram) prova-o de forma cristalina. Está o Público (e o DN, o JN, o Expresso, o “i” e tantos outros…) a grande distância da liberdade que apregoa e afirma como característica do seu projecto editorial.

Nota: este é o momento de confrontar a União Europeia, a NATO e o governo francês em particular com as suas imensas e determinantes responsabilidades no crescimento de uma nova “jihad” que agora (e uma vez mais) lhes rebenta nas mãos; é tempo de lembrar que em 2012 foram capturados na Síria cerca de duas dezenas de agentes secretos franceses que apoiavam no terreno o “Exército Livre da Síria”, uma das facções da “jihad” que destruiu e destrói um dos únicos estados laicos da região; é tempo de lembrar que em Abril de 2013 a União Europeia decidiu comprar às claras petróleo aos “rebeldes” que haviam tomado para si – e para o financiamento da sua “jihad” – poços de petróleo que pertencem na verdade ao povo sírio; é tempo de lembrar que o governo francês foi um dos elementos chave no esforço de guerra da NATO na Líbia – um dos paraísos do novo jihadismo itinerante -, e que boa parte daqueles que hoje ameaçam vidas inocentes em todo o mundo fizeram nesse contexto de guerra a sua formação (para)militar.