Porque se indignam eles

Internacional

Na televisão, ontem, numa reportagem sobre a concentração em Lisboa sobre a tragédia de Charlie Ebdo, uma jovem emocionava-se. Porque se emocionaram ontem aquelas pessoas, melhor dizendo, porque é que apenas ontem se mobilizaram aquelas pessoas? Emocionam-se sempre que há notícia de tragédia ou terá sido só mesmo ontem?

Porquê apenas agora a comoção? Descobriram que a morte é sinistra e pode ser injusta? Mas será que só esta semana é que descobriram que há gente massacrada neste planeta, que há vitimas inocentes?

Políticos de direita e editoriais de diversos órgãos de comunicação social burgueses também tomaram posições.

A realidade das sucessivas tragédias neste mundo é sempre mais bruta que as aparências, e não há episódio isolado capaz de esconder a dimensão da bestialidade que grassa. Por mais que se olhe para a árvore evitando uma visão panorâmica sobre a floresta.
A comoção burguesa é selectiva e de classe, não é para todos.

Comove a burguesia o facto do crime ser em Paris. Paris é a Cidade-Luz, fica no centro da Europa, é cidade e capital de Ensino e Ciência, de Arte e Cultura, de acordo com os padrões “ocidentais”, é cidade símbolo de prosperidade. É a cidade que a burguesia idealiza e quer, e aqui não se quer crime nem sangue, muito menos massacres. Por isso, no espaço, o massacre foi inesperado e custoso. Isso do crime e do terror, não são para Paris, isso é nos subúrbios da Terra, lá longe, nos sítios distantes, lá longe, entre desertos e lugares exóticos ou poeirentos, nos sítios condenados do costume, nas terras saqueadas pelo crime e indiferença capitalista, nos sítios que o imaginário reporta como tão diferentes da civilização e respectiva tranquilidade.

Comove a burguesia o facto do crime ter como alvo a redacção de um jornal satírico e vitimado os seus cartunistas. Eram homens criativos, viviam do seu intelecto e da sua arte. Eram intelectuais, não eram empregados nem operários. E tinham nacionalidade francesa. Homens que no imaginário burguês provavelmente teriam um padrão de vida não muito diferente do que se espera de um parisiense. Quem é assim não é suposto ser alvo de ameaças, muito menos de massacres.

É esta descontextualização do crime, para os padrões burgueses, que o engradecem no impacto. Que lhe dão ares apocalípticos(qualquer um pode ser alvo, em qualquer altura e lugar), quando até foi bem selectivo no alvo.

Qualquer ser humano se comove com a notícia da barbaridade que aconteceu, mas muitos certamente se sentiram ofendidos com as manifestações de comoção e de juras de humanidade e nobres preocupações com a “liberdade de expressão” e toda a sorte de oportunismos que se foram observando nos últimos dias. Ofendidos, porque sentiram a injustiça do diferente tratamento dado à vida humana.

Quantos destes charlies, se indignaram com os 43 estudantes mexicanos executados nas mais suspeitosas condições, quantos se indignaram com os 46 antifascistas carbonizados às mãos de nazis na Casa Sindical de Odessa, quantos se indignam com a desgraça diária no Mar Mediterrâneo? E desses defensores da “liberdade de expressão” quantos se indignaram quando os EUA bombardearam a televisão jugoslava em Belgrado? E tantos outros exemplos não poderiam ser deixados…

A morte e a violência parecem sempre mais horríveis quando nos são próximas e atingem os que são parecidos connosco. É assim.

Hipocrisia e emoção selectiva

Como espero que o leitor tenha compreendido, este texto não pretende julgar os sentimentos de ninguém. Este é um texto que se pretende arremessar contra a hipocrisia da incoerência do oportunismo da emoção burguesa, selectiva por natureza. Porque a emoção burguesa não chega aos subúrbios e às periferias do seu conceito de Humanidade. A sua comoção não ultrapassa as apertadas barreiras do “ocidente”, nem as barreiras de classe.

Por isso emociona o assassinato de um parisiense muito mais que o assassinato de um estudante de guerrero ou de um família de Gaza, Kobane, do Iraque ou da Líbia. Por isso é notícia um massacre em Paris mas já não o é se for em Odessa.

* Autor Convidado
Filipe Guerra