Nem um só passo atrás, em defesa da Constituição

Nacional

Um dos erros mais comuns cometidos por quem, sem conhecer as circunstâncias e as implicações dos combates na região de Estalinegrado, se refere a esta batalha é a afirmação de que se tratou de uma disputa entre dois homens – Hitler e Estaline – apostados em arriscar e sacrificar tudo por uma questão de reputação e orgulho pessoal.

Trata-se de um disparate, naturalmente. Nem os nazi-fascistas avançaram sobre Estalinegrado por ser esta uma cidade cujo nome (de então) evocava Estaline, nem o exército vermelho defendeu heroicamente toda aquela imensa linha para salvar a honra daquele que era a principal figura do estado e do exército soviético.

Muitas foram as motivações que levaram os nazis a concentrar quase todo o seu poder de fogo no Cáucaso naquele verão de 1942. Destaco duas fundamentais: a necessidade de chegarem o quanto antes aos campos de extracção de petróleo localizados nas regiões de Grozni e Baku, defendendo simultaneamente as zonas ocupadas na sua retaguarda e em especial os campos de petróleo romenos; a tentativa de cortar ao exército vermelho uma das suas principais vias de comunicação com o exterior e entre regiões soviéticas: o imenso Volga.

Os soviéticos conheciam bem a importância estratégica [e naturalmente moral] de Estalinegrado e sabiam que a região era chave no domínio de recursos vitais para o esforço de guerra dos dois lados. Perder Estalinegrado, recuar para trás da linha do Volga, tinha um significado verdadeiramente terrível, o que aliás determinou a defesa heróica de estreitas faixas de terra, muitas vezes isoladas entre si, dando expressão prática à célebre ordem 227, “nem um só passo atrás”.

A defesa de Estalinegrado foi na verdade a defesa vitoriosa da própria União e do socialismo soviético. A sua sorte resultou de factores anteriores à batalha, que retardaram fortemente o avanço dos nazis em direcção ao Volga, mas também – naturalmente – do trabalho concertado entre aqueles que combatiam no terreno e os milhões que na retaguarda criavam as condições logísticas, económicas, militares, políticas e morais que fizeram da cidade-mártir o túmulo do fascismo hitleriano.

Tenho lido muito sobre Estalinegrado. O tema interessa-me particularmente, mesmo se considerado no conjunto mais vasto da Grande Guerra Pátria 1941-1945. Interessa-me o que é história passada e interessa-me sobretudo o que é lição intemporal: o exemplo, a coragem, a organização, a entrega, a táctica e o papel que em todo o cenário desempenharam desde a primeira hora os comunistas, dentro e fora do exército vermelho.

Recordo por exemplo a forma como os soviéticos resolveram o problema criado pelos constantes ataques dos stukas alemães à primeira linha de defesa do exército vermelho: fizeram-na avançar tanto em direcção aos alemães que os stukas se viam na impossibilidade de, bombardeando os soviéticos, evitar as suas próprias tropas. Recordo o exemplo de Pavlov e do edifício que ocupou durante várias semanas [a “casa Pavlov”], impiedosamente bombardeado pelos alemãs, mas sempre resistindo. Recordo o trabalho invisível dos sapadores soviéticos, os homens que fizeram a guerra subterrânea, escavando abrigo, esconderijos, galerias para circulação de tropas, mantimentos, armas, munições, ou túneis que avançavam pela zona de ocupação alemã para depois explodirem inesperadamente. Recordo o papel da população civil na construção das (infelizmente frágeis) fortificações da cidade, ou o papel dos organismos e dos quadros civis do Partido, tão relevantes que eram fuzilados como franco-atiradores após detenção pelos alemães.

Estalinegrado é portanto história mas igualmente presença quotidiana, pelo menos para mim. Não a vejo em todo o lado, mal seria, mas aprendo permanentemente com o que vou lendo e pensando sobre o seu contexto, conteúdo e exemplo.

A luta em defesa da nossa Constituição, por exemplo, a merecer postura como aquela assumida pelo exército vermelho após a divulgação da já referida ordem 227, “nem um só passo atrás”, faz-me lembrar alguns elementos específicos do contexto de Estalinegrado. Defender as liberdades democráticas, os princípios e os direitos consagrados na Constituição da República Portuguesa é, de certa forma, impedir o avanço daqueles que a querem ver destruída para lá do nosso Volga. Não é capricho nem combate de desfecho indiferente: é crucial. Trata-se de uma luta determinante no momento presente, cujo desfecho condicionará em larga medida o futuro – nosso, dos nossos filhos e netos – de forma tão evidente quanto os combates de 1942-1943 determinaram o desfecho de Maio de 1945.

A Constituição da República Portuguesa não é o projecto dos comunistas portugueses, é certo. Mas a sua defesa e, mais do que isso, a materialização de muitos dos seus princípios é parte do caminho que pretendemos trilhar, rumo ao socialismo.

Nem um só passo atrás. Defendamos cada “palmo” da Constituição tal como os nossos antepassados – aqueles iguais a nós, independentemente da nacionalidade – defenderam a cidade mártir do Volga.