“No princípio era a Mãe, o Verbo veio depois.” Esta frase de Marilyn French, feminista norte-americana, no seu livro Beyond Power (1985), reorienta-nos na mais que justa reposição da verdade. Essa verdade histórica e científica que é o lugar primordial, fundador e original da mulher na História da Humanidade. Só que através das sombras dos dias, de que resta memória mas não consciência, não muitas gerações volvidas, o reinado que era seu por direito foi substituído, foi derrubado, desprezado e subvertido. Derrubado não pela culpa de um pensamento só, de uma só civilização, de uma religião ou evento isolado, mas de uma espantosa – e terrível – simultaneidade de factores que trouxeram essa herética “inversão” até aos nossos dias.
Assim foi. Os primeiros seres humanos, por simples empirismo, começaram por venerar ‘a Mãe’. A Mãe natureza, a Mãe portadora de vida, a fonte e origem de todas as coisas, o garante de tudo o que existe. Na mitologia helénica, quem criou o mundo não foi um deus-homem. Foi Gaia, deusa da Terra, Mãe Terra. Do seu ventre, nascem todos os protodeuses, incluindo Zeus, o futuro dominador do Olimpo. No candomblé, religião derivada do animismo africano, no princípio era Nanã Buruku, mãe de todos os orixás, sem auxílio de quem quer que seja. De um modo geral, a Mãe adorada era sempre permissiva, amorosa, nunca dada a imposições, a punições ou a castigos. Era mulher, era mãe, e os homens que se lhe curvavam faziam-no não apenas por idolatria, não apenas por bajulação ou obediência, mas sobretudo para receber um afago de ternura celestial. O culto era a procura desse gesto de carinho. A saciação da necessidade de acolher o amor fraterno que só uma mãe, só uma mulher, saberia e poderia dar.
Dois mil anos antes de Cristo, os homens trocaram o afago da pele sedosa de mãe pela mão calejada e grossa de um pai. Da candura do matriarcado, passou-se ao todo-poderosismo e omnipotentismo de um deus de voz grossa, mandão, regente, beligerante, centro de todas as coisas. Tomou o poder pela força, claro está, que ninguém lho entregou, porque criador por natureza não podia ser, já que a origem da vida continuava reservada ali e sempre ao ventre de uma mulher. O orgulho másculo, sob capa de protector em tempos de guerra, não deu parte fraca, mas foi efectivamente ‘fraco’, tratando de condenar a mulher à mais humilhante das subversões.
O empossado deus-homem cria o mundo sozinho. Cria o ar, a terra, a água, as árvores e as plantas, e ao sétimo dia conclui todas as coisas criando o homem, a sua magnum opus. Terá deixado ‘o melhor’ para o fim, e numa atitude de hipócrita misoginia, de uma costela, ainda por cima ‘torta’, decide criar a mulher. Tudo se inverte, e agora é o homem que ‘dá à luz’ a primeira mulher. E cria-a tratando de a catalogar ab initio de criatura errónea, sedutora e fatal, culpada, logo aí, da tentação do homem, que neste sistema de ‘valores’ não tem culpa de qualquer mal. A partir daqui e para sempre todos os infernos, todas as raivas e culpas, recaem sucessivamente, umas após outras, sobre a já esquecida mãe dulcíssima de todos os princípios. A sombra dos dias abandona o preto e começa a ganhar tons rubros, vermelhos, tons de dor e de sangue, de muito e muito sangue.
A grandeza deixa a mulher e passa definitivamente para o homem, que trabalha, que protege e que tudo domina. Na Idade Média, as mulheres conservam e transmitem, desde tempos muito antigos, sabedorias imensas. É sobretudo nesta altura que ser-se sabedor significa também ser-se culpado, ser-se pecador. Dominam conhecimentos naturais, fazem partos, curam doenças, saram males do corpo e também da alma, um poder imenso que inevitavelmente haveria de ser invejado, subvertido e alvo de extrema punição. Por directa consequência, não tardou a que fossem imediatamente tidas como feiticeiras, bruxas, pactuantes com o diabo. As suas curas incompatibilizam-se com os interesses dos médicos das famílias feudais, pois roubam-lhes ‘clientes’. Feito o pacto dos senhores dos monopólios com os eclesiais, viriam as perseguições, condenações, fogueiras, chegariam as mortes, às centenas, aos milhares, num inferno que se arrastaria por décadas a fio. A mulher padece, o homem acentua o seu domínio. Injusto. Cruel. Desigual.
Séculos de opressão e subjugação deram na terrível assunção pela própria mulher do seu papel de inferioridade. A tal ponto que as mães, sem remédio, passaram a educar as filhas no sentido do dever natural de obediência, de servilismo, de baixa condição. Foram precisos muitos séculos até à sua emancipação, até à coragem da libertação das amarras, até ao início do caminho da igualdade, e é por aqui, por enquanto, que nos temos que deter. No início da libertação, sim, que a tarefa se mostra longe, bem longe, de estar sequer pela metade, quanto mais poder dar-se a coisa por atingida, concluída ou acabada.
Estamos no século XXI, ano de 2013*, e ainda há densas e carregadas nuvens encobrindo aquele sol primordial da ‘mãe’ de tudo o que existe, mantido oculto durante todos estes séculos. A mulher do presente vive ainda arredada do pleno direito, da plena igualdade, afastada da justiça, ainda que a personifique, do ponto de vista simbólico. No trabalho, cujo lugar paulatinamente à custa de muito sacrifício foi conquistando, a mulher tem sido bastante mais explorada, vítima fácil da pressão, da humilhação e da coacção, ainda recebendo bem menos, trabalhando bem mais. Em muitos países, continua subjugada atrozmente ao jeito medieval, sem direitos, sem nome, sem rosto nem voz. Sob capas distintas, em ambientes sociais e económicos diversos, a mulher continua mergulhada e isolada num poço fundo, ao qual por conveniências da dominância, os patriarcas de hoje se recusam – como era dantes – a lançar a corda para as içar das profundezas do ser, do estar e do saber.
Cada ano que passa, é cada passo dado nesta lenta reconquista pela mulher do seu efectivo lugar no mundo. Hoje nos direitos laborais, amanhã na cultura, ontem e sempre na dignidade, o percurso de vida feminino é uma constante batalha, longe de estar terminada. Hoje, dia 8 de Março, como em todos os dias do ano, devemos-lhe justiça. Pelo menos, é-nos moralmente exigido que não percamos a consciência histórica daquilo que a mulher foi e daquilo que sofreu. Não esqueçamos ainda que enquanto o homem, ao sabor das agressões e das guerras, se defendeu petrificando a alma e o coração contra as agruras da vida, já a mulher, vítima de não menores atrocidades, endureceu a alma e a firmeza de espírito, mas permaneceu em suave ternura e delicadeza, sem mácula, mantendo o requinte dos sentidos, dos gestos e dos afectos.
Imitemos os nossos ancestrais. Façamos com pequenas acções o que fizeram os primeiros homens, exactamente naquilo que os relacionava, em corpo e em espírito, com ‘a mãe’, a ‘mulher’, a ‘deusa’, a ‘origem’ de tudo. Amemo-la veneradamente! Curvemo-nos de novo, voltados como templos para oriente, desde o sol nascente ao poente! Prostremo-nos para receber o dulcíssimo afago e cheguemo-nos perto para sermos acolhidos no seu colo maternal! Prestemos-lhe culto, dediquemos-lhe tempo, partilhemos espaço e definamos encontro! Não apenas porque elas disso necessitem, mas também porque nós próprios, homens, necessitamos delas cada vez mais.
*data de redacção original.
9 Março, 2022 às
Muito bom! Obrigada!