Nós sabemos. Mas eles também.

Nacional

Da inflação temporária ao perigo de uma recessão global foi um tirinho que muitos não esperavam. António Costa anunciava no final de 2021, juntamente com Centeno, que a inflação não podia motivar um aumento salarial, porque era “um fenómeno temporário” . Aliás, não apenas a inflação era um fenómeno temporário, como o aumento dos salários poderia torná-la permanente, diziam como justificação para o tremendo corte salarial que impôs o governo de maioria absoluta do PS aos trabalhadores da função pública que, confrontados com uma inflação de 7 a 8% (acumulada), tiveram um aumento salarial de 0,9%. Ou seja, numa ordem de grandeza abaixo dos valores da inflação.

A pandemia, a guerra, até o consumo foram utilizados como pretextos. O último episódio do podcast do manifesto74, a cassete pirata #6, aborda aliás os efeitos da inflação na vida dos trabalhadores e as suas origens e pretextos utilizados por governantes e patrões.

O actual primeiro-ministro diz agora que uma recessão não é um cenário que se coloque e que a economia nacional “vai continuar a crescer acima da média europeia”. Este é um exercício de adivinhação aparentemente muito seguro para quem diz que o cenário é muito incerto quando se trata de assegurar direitos e salários para os trabalhadores e para a população em geral.  Contudo, uma afirmação destas, por parte de um governante que ainda no início de 2022 dizia que a inflação era um fenómeno temporário, é um alerta de fazer soar os alarmes até dos mais incautos. Principalmente numa altura em que até os grandes banqueiros americanos anunciam a aurora de uma nova recessão à escala estadunidense. A recessão anuncia-se a todo o vapor: a União Europeia já a sente em diversos países, como resultado da manobra de sabotagem económica perpetrada pelos EUA e seus fantoches colocados nos governos de toda a União Europeia através, em grande parte, da desestabilização geopolítica e da promoção da desindustrialização no continente.

Mas a recessão que António Costa assegura que não se sentirá na nossa jangada lusitana preocupa bancos centrais por todo o mundo. E a sucessão de recessões mais próximas e cada vez mais potentes no âmbito das oscilações naturais da economia capitalista a que se vem chamando de “crises” pode provocar danos maiores do que a aparente soma dos danos. Há inúmeras empresas que se mantêm à tona de uma economia como a actual porque as recessões não foram suficientemente grandes para as deitar abaixo. A actual sequência de recessões pode vir a fazer afundar gigante. Empresas e corporações que aparentam robustez titânica podem colapsar como castelos de cartas.

As Nações Unidas, através da sua Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento, anunciam os impactos das medidas monetárias e da especulação com particular grau de preocupação. Só António Costa está em condições de garantir que, ante o risco grave de uma recessão de nível histórico à escala global, Portugal sairá rumo ao sucesso de uma economia florescente, apesar de alinhado e dependente de todas as economias que estão na base do actual grande falhanço do capitalismo.

Mas então, o que está na origem da inflação que já não é temporária? E o que está na origem da recessão anunciada?

Em primeiro lugar, vejamos:

A pandemia. A pandemia em si mesma não provoca um abrandamento da economia. As medidas adoptadas perante a pandemia, isso sim. Por todo o mundo capitalista, os centros de decisão escolheram interromper cadeias produtivas e logísticas, destruir postos de trabalho, desindustrializar, subjugar países inteiros à indústria farmacêutica privada, criar oportunidades de negócio e limitar direitos e liberdades dos cidadãos. Durante o período em que o mundo atravessou as piores fases do confronto com o vírus, o capitalismo demonstrou a sua total inépcia para resolver problemas que não sejam os dos accionistas. Enquanto milhões eram lançados no desemprego, um milionário ascendia à condição de bilionário. Enquanto milhões eram sufocados pelo avanço da pobreza e pela falta de resposta de serviços de saúde, os dez homens mais ricos do mundo duplicavam a sua riqueza. Ou seja, a pandemia não implicaria recessão, crise económica, financeira ou inflação acaso tivesse sido enfrentada pelos estados numa perspectiva de resolver os problemas das pessoas e não na perspectiva de alargar e consolidar mercados e oportunidades de esplêndidos negócios, aumentando de forma histórica as taxas de exploração.

A resposta política dos países capitalistas perante a pandemia, essa sim, foi o amplificador dos graves problemas que já estavam latentes na economia capitalista à escala global.

Em segundo lugar:

A guerra na Ucrânia. A guerra na Ucrânia é, objectivamente, inflacionária, mas isso não explica a amplitude dos artigos e mercadorias inflacionadas, nem a dimensão da inflação. A guerra na Ucrânia explica, no entanto, a vantagem competitiva que o dólar está a conseguir perante o euro e outras moedas, principalmente africanas, num contexto em que também o dólar deveria estar a cair. Ou seja, a queda do dólar é factual, mas tal como na física, também nesta matéria tudo é relativo, e sendo que o euro cai mais, o valor relativo do dólar face ao euro cresce. Esta guerra tem um efeito claro na inflação à escala mundial: centra no continente europeu e africano os efeitos de uma desvalorização brutal do dólar, colocando sobre essas regiões uma pressão monetária cuja origem se encontra no capitalismo baseado no dólar. O aumento dos preços da energia está a colocar uma parte significativa da indústria europeia sem condições de concorrer com outras indústrias, ou mesmo de assegurar a sobrevivência face aos custos de energia e matérias-primas, ao mesmo tempo que se verifica uma crise no fornecimento de mão-de-obra por ruptura de décadas no fluxo de formação de novos trabalhadores e por força da desvalorização contínua dos salários. Olhando para o globo como um todo, com diversos pólos industriais, financeiros e políticos, é possível perceber que a inflação na região europeia é simultaneamente o resultado de um contágio da inflação americana que se inicia no final de 2021 e o balão de oxigénio do dólar que contém a sua desvalorização, por força de a desviar para outras regiões do globo.

Apesar de tudo isso, a origem da actual situação é o capitalismo no seu funcionamento regular. A pandemia representou apenas o contexto histórico em que milhares de bilionários e a classe dominante em geral puderam, pelo controlo exercido sobre os estados, acumular a um ritmo e volume nunca antes visto. E quando se diz “nunca antes visto” não se recorre a hipérbole.

O volume de dólar em circulação, contando com o Eurodolar, mais do que duplicou entre 2020 e 2022, sendo que a grande parte foi utilizada pelos Estados Unidos da América para comprar obrigações e outros instrumentos de dívida a instituições financeiras, supostamente para financiar a contenção das taxas de juro, permitindo introduzir liquidez na economia a baixo custo. Essa política significou, objectivamente, a criação de moeda a um ritmo nunca antes visto, saturando a capacidade de qualquer repagamento real dessa dívida e desmateralizando ainda mais a economia estadunidense e, por consequência, a mundial. A brutal quantidade de dólar em circulação foi acompanhada de uma política semelhante por parte da União Europeia.

A desvalorização do dólar e a consequente inflação à escala de todos os países que negoceiam em dólar (a globalidade em transacções internacionais) eram absolutamente inevitáveis. Encharcaram o mercado de dólares, mas a produção não cresceu – ou seja, a riqueza real, não cresceu – e os dólares “impressos” foram parar todos ao mesmo sítio.

A pergunta que se impõe é óbvia: para onde foram esses dólares e euros?

Essa resposta já foi dada algumas linhas acima: “os dez homens mais ricos do mundo duplicaram a sua fortuna durante a pandemia”; “um novo bilionário a cada 30 horas durante a COVID”.

A factura dessa acumulação sem precedentes está a chegar agora às mãos de todos os trabalhadores, empregados ou desempregados, com efeito spill-over para as dívidas públicas sempre que se demonstre necessário. A emissão de moeda fictícia a um ritmo, não apenas desfasado do ciclo económico, mas em total contra-ciclo com as quebras de produção e com a desindustrialização e perda do poder de compra da generalidade da população mundial.

A inflação que pretendem curar com taxas de juro mais altas e com salários mais baixos, ou seja, com mais acumulação, foi provocada precisamente por sobre-acumulação capitalista num contexto de contração económica. A solução dos patrões está à vista – estabilizar o valor da moeda através de três políticas centrais: a guerra, o custo do dinheiro (taxas de juro), a desvalorização salarial, assim permitindo a continuação do processo de acumulação.

Sabemos desde os tempos de Marx que o capitalismo não conhece um “estado de manutenção”: ou acumula constantemente, ou morre. Eles também sabem.

1 Comment

  • José Monteiro

    18 Outubro, 2022 às

    Eles comem tudo e não deixam nada. Depois chamam-lhe inflação.

Comments are closed.