Nunca um português chegou tão longe

Nacional

Quando visitávamos a aldeia da minha mãe, em Trás-os-Montes, o meu tio fazia sempre questão de apontar quem era o senhor que era pai do doutor, fosse o doutor juiz, médico, enfermeiro, professor, engenheiro, arquitecto, advogado ou outra coisa qualquer. Era o retrato de um país ainda com o fascismo cravado na mente, das aparências, da subalternização, mesmo quando já estávamos no final da década de 80 e a entrar nos anos 90. Era aquela reverência saloia que permanecia numa zona do país onde a electricidade ainda só chegava ao centro da aldeia. Os restos de um país com as contas em dia, porque naquele tempo é que era bom.

Quando Durão Barroso encontrou um país de tanga e fugiu depois de deixá-lo todo nu, rumo à presidência da UE, o saloiismo que veio novamente à tona. Nunca um português tinha chegado tão longe, um cargo tão importante, a ajuda que poderia dar ao país, afinal, era um português. E o prestígio para a nação? Tantos comentadores, artigos nos jornais, peças de rádio e tv que explicaram a fuga rumo a um tacho melhor como sendo um ponto de viragem nas relações do país com a UE. E o prestígio? Já falei no prestígio?

Faltou explicar que Barroso era nascido em Portugal mas tem a nacionalidade que a esmagadora maioria dos líderes europeus sempre teve: o capital. Sem pátria, claro, porque vai andando de bolso em bolso sem nunca sair dos bolsos dos mesmos, num círculo que se fecha quando alguém que exerceu um cargo político passa para o sector financeiro. Paga-se tudo.

Barroso sabe-o e percebeu-o logo em 2003, quando serviu de mordomo à Cimeira das Lajes, que abriu caminho à invasão do Iraque em busca das armas de destruição massiva. Ao lado de Bush, Blair e Aznar, Portugal entrava no mapa da guerra. Barroso associou um país inteiro à morte de mais de meio milhão de pessoas. E, ainda hoje, continuamos à procura das armas que abriram caminho a mais uma guerra, mesmo quando já toda a gente questionava a sua existência, incluindo Hans Blix, responsável da ONU naqueles anos. Toda a gente sabe quem ganhou. Os interesses geoestratégicos, a máquina de guerra dos EUA que precisava de novo impulso, o petróleo, a necessidade de manter em guerra uma zona do globo e a instalação de um governo-fantoche. Treze anos depois, o Iraque continua destruído.

A semana de Kadhim Sharif al-Jabouri e Blair

O nome dirá pouco a quase toda a gente, mas a imagem correu mundo. Kadhim era o homem da marreta que destruía a estátua de Saddam, depois de o ditador ter matado 14 dos seus 15 familiares. Passados 13 anos, apesar do sofrimento por que passou ao ver a maioria da sua família morta, Kadhim afirma que “Bush e Blair são mentirosos. Eles destruíram o Iraque, mandaram-nos de volta à estaca zero, de volta à
Idade Média”, diz Kadhim, revoltado. “Se eu fosse um criminoso, iria matá-los com as minhas próprias mãos
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Kadhim já não vive em Bagdade. Tal como milhões de refugiados, fugiu da capital iraquiana para Beirut, no Líbano. Bagdade deixou de ser segura a todos os níveis, especialmente depois do aparecimento do Estado Islâmico, que só este ano já realizou oito atentados terroristas no Iraque. Kadhim esquece Aznar e Barroso. E o nosso mal é tantas vezes a memória, seja em que parte do globo for. Mas foi este Iraque que Barroso ajudou a destruir.

Também nesta semana ficámos a conhecer as primeiras conclusões do Chilcot Report, que acusa Tony Blair de ter sido imprudente e não ter esgotado todas as possibilidades de evitar uma guerra pelo petróleo que ainda hoje faz vítimas. Mas isso não é problema para Blair. Nem as empresas petrolíferas que representa nem a financeira JP Morgan parecem preocupadas com isso. Continuará a ser pago a peso de ouro.

Barroso promovido

Também nesta semana ficámos a saber que Durão Barroso será promovido, com o cargo de presidente não-executivo da Goldman Sachs. Aquele banco que esteve na origem da crise de 2008. Lembram-se? Não é caso único, claro. É uma família de iluminados, basta recordar que, em Agosto de 2014, o filho de Durão Barroso foi contratado pelo Banco de Portugal sem qualquer concurso, por ser um caso de “comprovada e reconhecida competência profissional”. Os favores pagam-se e foi assim com Álvaro Santos Pereira, que rumou à OCDE, com Maria Luís Albuquerque, na Arrow, e Portas, na Mota-Engil.

E daqui temos a prova que se Roma não paga a traidores, Bruxelas e todo o poder financeiro que lhe está associado, paga. Bem e para a vida toda. Aguardemos, pois, o discorrer de todos os méritos de Durão Barroso, o excelente trabalho que fez numa UE em desagregação, o peso dos mortos que devia ter na consciência, se a tivesse, a espinha direita em direcção ao seu umbigo. Voltemos agora às declarações de grandiosidade saloia, de ver como aquele é o Durão, o senhor doutor que é presidente de tudo e mais alguma coisa, que matou e continua a matar milhares de pessoas. Mas é doutor.