Esta semana, Margaret Chan, a Directora-geral da Organização Mundial de Saúde, explicou a inexistência de uma vacina contra o ébola: «uma indústria farmacêutica baseada no lucro não investe em produtos que o mercado não possa pagar».
Tudo isto foi incompreensível para o cão Excalibur. A vida do cão Excalibur era só uma vida de cão: as mesmas necessidades fisiológicas dos humanos, os mesmos órgãos vitais; repetidos numa vida mais curta, concentrados num corpo mais pequeno; destituídos de metafísica. É sobejamente conhecido que os cães não fazem metáforas. Talvez por ser assim tão simples de espírito, Excalibur não pôde entender quase nada. Apenas isto: num dia os donos estavam e no outro já não; nesse dia ficou com muita comida mas sentiu-se muito sozinho; depois apareceu muita gente na rua onde ele antes passeava; as pessoas gritavam muito lá fora e, à varanda, ele ladrou também; depois chegaram muitas carrinhas e os humanos lutaram; então a porta abriu-se, mas ele já sabia que não eram os donos; estes humanos vestidos de branco fizeram-lhe festas na cabeça e brincaram com ele. Depois picaram-no com qualquer coisa e ele fugiu para debaixo da cama.
O capitalismo moribundo só tem uma cura para o ébola: bombas, muros e abates.
Poderíamos ter tentado explicar a Excalubir, desde o princípio dos princípios, porque é que teve que ser assim. Porque os seres humanos dedicaram os últimos quinhentos anos a saquear a riqueza e a vida do continente africano. Mas Excalibur não teria compreendido. Podíamos ter-lhe contado como escravizaram nações inteiras e se apropriaram das minas, dos campos das fábricas e das florestas, enquanto milhões de outros seres humanos morriam à fome e de doenças estúpidas, porque a morte, a fome e as doenças estúpidas geram mais lucro que as vidas dos humanos. Podíamos dizer-lhe que de depois um genocídio com 200 milhões de vítimas em somente quatro séculos, o colonialismo deixou as veias de África abertas para a dívida, para a delapidação das suas economias, para o capitalismo. Podíamos tentar explicar ao cão Excalibur porque é que ao sistema capitalista mundial dos humanos nunca interessou se os africanos morrem ou vivem, se os rios fumegam merda ou ácidos pestilentos, se não há hospitais nem escolas nem pão nem água potável, se a pele das crianças negras arde tenra e rubra ao fogo europeu do fósforo branco nem se o ébola já ceifava vidas desde a década de setenta. Podíamos explicar-lhe que é por isso que ele tem que morrer. Podíamos explicar-lhe isto tudo e muito mais, mas Excalibur olhar-nos-ia com o seu plácido ar confuso e, provavelmente, lamber-nos-ia as mãos sujas.
Mas não é por não ser humano que Excalibur não poderia compreender. Pelo contrário, Excalibur não poderia compreender porque era, como qualquer cão, demasiado humano para compreender tanta desumanidade: Excalibur não poderia compreender porque é incompreensível, como é incompreensível que ao cabo de tantos anos a aprender truques com os homens, os cães só tenham retido a amizade, a fidelidade e a ternura.
A fotografia do cão Excalibur, encolhido e abandonado num sofá, é a metáfora madura, sem intenção nem metafísica, de um mundo doente. Um mundo em que a vida humana foi tão desvalorizada, que a morte de um cão nos indigna, não pela ética do abate, mas pela superioridade ética do cão sobre os capitalistas que decretaram o sacrifício.
Sacrifício, porque esse foi o nome empregue para a vernissage do que se está a estender pelo mundo: uma epidemia muito pior que o Ébola, mil vezes mais antiga e muito mais letal: a demência. A desumanidade e o desprezo pela vida do capitalismo moribundo só tem uma cura para o ébola: bombas, muros e abates. E enquanto Cuba socialista envia legiões de médicos para o continente Africano, nos EUA e na Europa espalha-se, a passo de ganso, a febre hemorrágica da sanidade, contagiando os povos com histeria, racismo e ódio. Assim, de repente, a culpa do Ébola é dos imigrantes, dos doentes, dos pobres, dos pretos, dos outros. E à grande burguesia, que privatizou a saúde e destruiu os orçamentos para a investigação científica, só resta entaipar as janelas, abater os cães, queimar as roupas, sacrificar os enfermeiros e, como é costume europeu, rezar para que tudo passe.
Poderíamos ter explicado tudo isto ao cão Excalibur? Como explicar-lhe que ao final de tantos milénios a evoluir juntos, os humanos continuem, apesar de todas as filosofias, tecnologias e ideologias do mundo, tão inexplicavelmente desumanos?
Um governador do Distrito Equatorial do Congo Belga uma vez escreveu que “para recolher borracha no Distrito… devemos cortar mãos, narizes e orelhas”. Foi há pouco mais de um século que o Rei Leopoldo II da Bélgica, à moda de portugueses, franceses e quejandos, ordenou o genocídio de dez milhões de africanos. Para que o passado dê alguma coerência ao presente e Excalibur perceba o que lhe fizemos, devemos lembrarmo-nos disto: o Ébola não vem de África, não vem dos cães nem vem dos pobres, vem dos arranha-céus da Europa e dos EUA, vem do capitalismo, vem do Coração das Trevas de Conrad… vem do fantasma do Rei Leopoldo, cujos valores ainda assombram o mundo: lucro, poder, exploração.
Ainda bem que os cães não compreendem isto. O que seria de nós? Se nem eles gostassem de nós?