O direito à cultura e o Estado-Ninja

Nacional

A Constituição da República Portuguesa diz-nos, no primeiro ponto do seu Artigo 73.º, que “todos têm direito à educação e à cultura”. Vai ainda mais longe, no terceiro ponto, quando afirma que “o Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social, as associações e fundações de fins culturais, as colectividades de cultura e recreio, as associações de defesa do património cultural, as organizações de moradores e outros agentes culturais”. Mas que linda Constituição a nossa. Imaginem que era cumprida.

Tal como dezenas de outros capítulos, artigos e respectivos pontos, os que dizem respeito à cultura também estão longe de serem uma realidade nas vidas dos portugueses. O lado da barricada de quem não quer ver a Constituição de Abril na prateleira da ficção sabe com quem contar. Na Assembleia da República, a única força política que defende verdadeiramente os direitos plasmados na Constituição é, para variar, o PCP. Em 2017, foi do PCP a proposta de reposição da gratuitidade da entrada em museus e monumentos sob tutela da administração central, aos domingos e feriados, até às 14 horas, para residentes em território nacional, depois do governo de Passos Coelho – campeão na nobilíssima arte de rapinar direitos – ter posto fim a tamanho laivo de marxismo cultural. Foi também o PCP que, sabendo que a lei de 2017 era ainda insuficiente, se chegou à frente no passado ano de 2021, propondo alargar a gratuitidade das entradas ao dia todo. Felizmente, a proposta foi aprovada. Infelizmente, a lei só abrange 25 entre as centenas de museus e monumentos do nosso país.

A Direcção Geral do Património Cultural (DGPC) gere directamente 25 museus e monumentos e são estes os que obedecem à lei. Há notáveis exemplos de museus e monumentos geridos por autarquias cujo bilhete é gratuito ou de custo nunca superior a 2 euros, porém, há outros que são exemplo por razões opostas. São esses que aqui iremos explorar, bem como as suas habilidades esquivas, dignas do melhor dos ninjas, para evitar pertencer ao grupo dos 25. Antes de prosseguir, diga-se que estas entidades serão discípulas de um Estado que sub-repticiamente se desvia das responsabilidades que a Constituição lhe atribui.

Comecemos pelo recém-aberto Museu do Tesouro Real, situado na ala poente do Palácio Nacional da Ajuda. A sua execução ficou à responsabilidade da Associação Turismo de Lisboa, por incumbência da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e acompanhamento da DGPC. Acontece que o Palácio Nacional da Ajuda está entre os 25 geridos directamente pela DGCP, mas a sua cintilante ala poente não está, tendo ficado a cargo da Turismo de Lisboa. Conclusão: como não é gerido directamente pela DGPC mas por uma associação, o museu pode, aos domingos e feriados, cobrar-nos sem pudor o bilhete de 10 euros para termos o privilégio de ver, no conforto de uma das maiores caixas-fortes do mundo, corredores que se enchem de ouro roubado do Brasil e outras tantas pedras preciosas que a família real envergava, enquanto do lado de fora dos seus palácios se morria à fome. Em 2022, ainda estamos a pagar pelos seus faqueiros de prata e as suas tiaras de diamante. Se após a visita ao Museu do Tesouro quisermos passear no Jardim Botânico da Ajuda, também não entramos sem pagar.

No Museu Nacional de Arte Antiga – também nas mãos da DGPC – acontece algo semelhante. Aos domingos e feriados não se paga para ver a exposição permanente, mas paga-se sempre para conhecer a temporária. No Convento do Carmo, onde a entrada nunca é gratuita, um museu privado (gerido pela Associação dos Arqueólogos Portugueses) instalou-se num convento público. No igualmente público Centro Cultural de Belém, forram as paredes as obras da colecção privada de Joe Berardo e a entrada é piedosamente gratuita aos sábados. O Museu do Oriente, gerido pela Fundação Oriente, é gratuito às sextas-feiras das 18 às 20 horas. Como é gerido pela fundação com o mesmo nome, o Museu Calouste Gulbenkian escolhe estabelecer a sua gratuitidade aos domingos a partir das 14 horas. Já o Museu da GNR, por ser da GNR, não abre aos domingos ou aos feriados, diz a funcionária da bilheteira, “mas se abrisse, sim, provavelmente seria gratuito nesses dias”.

A EGEAC, por sua vez, define-se como tendo “o serviço público no seu ADN”, contudo, esse ADN que apregoa só dá de si aos domingos, das 10 às 14 horas, quando a entrada é gratuita nos espaços que gere, apenas e só para residentes no Concelho de Lisboa, gerando um curioso tipo de discriminação positiva. Esta empresa da CML gere espaços como o Museu da Marioneta, o Museu de Lisboa e o Castelo de S. Jorge, cujos bilhetes normais a 10 euros barram a visita a uma vasta maioria de famílias.

A propósito da discriminação positiva, analisemos o caso de Sintra, medalhista de ouro nesta modalidade. Os vários, célebres e públicos monumentos situados no Concelho de Sintra são geridos pela Sociedade Anónima (SA) de capitais exclusivamente públicos Parques de Sintra – Monte da Lua, na qual um dos quatro accionistas é a Câmara Municipal de Sintra. No conjunto destes monumentos inclui-se o mais visitado do país, o Palácio Nacional da Pena. Estaremos enganados se acharmos que são os portugueses que o levam ao pódio, pois os 14 euros exigidos na bilheteira num país com o salário mínimo actualmente fixado nos 705 euros mensais, obrigam as famílias a pensar duas vezes. A entrada nestes monumentos é gratuita aos domingos para residentes no Concelho de Sintra, mas não o é para mais ninguém.

O Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT), que se gaba por ser uma “instituição internacional que se dedica a promover o discurso crítico e a prática criativa”, existe e é gerido graças ao “mecenato” da privatizada EDP. A entrada é gratuita apenas no primeiro domingo de cada mês. O Museu da Água também arranjou forma de contornar a lei, sendo gerido directamente pela EPAL, do público Grupo Águas de Portugal. O Museu da Farmácia, que se afirma em Lisboa e no Porto, é privado e desconhece o conceito de entrada livre por pertencer à Associação Nacional de Farmácias. Em Lisboa, sobrando dinheiro, até servem “cocktails terapêuticos”; no Porto, quem quiser ver ao vivo e a cores o sarcófago egípcio de Irtierut, não tem outro remédio senão pagar por isso. Menos aos domingos. Porque está fechado.

Não seria preciso ir mais longe para percebermos que só cumpre a lei quem não se lembrou de impor, entre a lei e o museu, um empecilho que retire a sua gestão directa das mãos do Estado, porque o Estado deixa. Mas naturalmente, já que cá estamos, vamos bem mais longe e rumo ao Norte.

Seria impossível não falar aqui sobre Serralves, onde essa coisa dos direitos ainda não chegou – nem aos seus trabalhadores, nem ao visitante comum que não ganhe um salário acima da média – talvez porque o metro também não. Podemos sempre tentar a nossa sorte e dizer-lhes na bilheteira que temos menos de 12 anos porque, em Serralves, o bilhete geral tem o custo de 20 euros. Caso não possamos pagar 20 euros para explorar este enorme complexo e seus jardins, Serralves ajuda: podemos lá ir gratuitamente, no primeiro domingo de cada mês, entre as 10 e as 13 horas, só que três horas não chegam para ver tudo. Podemos sempre voltar dali a um mês, pronto. Durante três horas por mês, a Fundação Serralves é amiga da classe trabalhadora.

Como tudo o que eles quiserem pode ter uma gestão privada, privada é a gestão das galerias de arte rupestre a céu aberto de Foz Côa e do Museu do Côa, inaugurado em 2010. A Fundação Côa Parque foi criada em 2011 para gerir o Parque Arqueológico do Vale do Côa e o museu, à data recém-inaugurado, porque o Estado, coitadinho, tinha mais que fazer. Os seus fundadores iniciais foram o IGESPAR, a ARH Norte, a Entidade Regional de Turismo do Porto e Norte, a Associação de Municípios de Vale do Côa (AMVC) e o Município de Vila Nova de Foz Côa, tendo sido estabelecidos como actuais fundadores, em 2017, a DGPC, a Associação Turismo de Portugal, a Agência Portuguesa do Ambiente e a Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, ao lado da AMVC e do Município. Todos estes organismos são públicos, no entanto, ao visitar o património desta bonita cidade egitaniense, ninguém diria. Para visitar tudo o que se encontra nos núcleos em questão, um adulto terá de pagar 69,5 euros. Para uma visita nocturna ao monte da Penascosa, somem-se mais 20 euros; para um passeio de barco serão mais 20; de caiaque, mais 40, e para percorrer os trilhos pedestres, só mais 15. E não ficamos por aqui: existem visitas conjuntas até 40 euros por pessoa e que sobem até aos 70, se acaso quisermos almoço incluído. Isto sim é fazer da cultura um negócio. Isto sim é mercantilizar a arte, seja ela contemporânea ou rupestre. Outro exemplo de privatização do ar livre são as Grutas de Mina de Aire, geridas por uma SA da zona, especializada em empreendimentos turísticos e espeleológicos.

Não damos aqui novidade alguma quando dizemos que a Igreja Católica também tem queda para o negócio. Hoje, para entrarmos em algumas das principais catedrais de Portugal, já não o fazemos de graça. É o que acontece, por exemplo, nas Sés de Braga, da Guarda e de Évora.

Para terminar em beleza e “por vontade d’El-Rei D. Manuel II”, vamos à Fundação da Casa de Bragança, criada pelo regime fascista de Salazar, em 1933, e considerada pessoa colectiva de utilidade pública, em 1982, por despacho do Primeiro Ministro Francisco Pinto Balsemão, militante número 1 do PSD. A Casa de Bragança detém, presentemente, um extenso património, mesmo após a queda da monarquia portuguesa e duas revoluções. Na sua posse estão o Paço Ducal de Vila Viçosa e cinco castelos: Vila Viçosa, Alter do Chão, Alvito, Ourém e Portel. Abrem-nos ao público quando querem, e estabelecem o valor que lhes pagamos. Dizem que demonstram a “dimensão do peso militar do ducado de Bragança na organização do reino”. Um dia destes, a dimensão do poder do povo dir-lhes-á como é.

Nem só de visitas a museus e monumentos é feita a democratização da cultura, é certo, e no acesso ao teatro, ao cinema, à música, à literatura, entre outros, há necessidades por colmatar, trabalho por fazer e muitas mãos em falta. Tal como a maioria das famílias portuguesas não consegue pagar bilhetes para visitar Serralves, também não consegue pagá-los no Teatro de S. Carlos; não consegue explorar os monumentos de Sintra nem consegue encher as suas estantes de livros novos; não consegue ficar a conhecer as gravuras rupestres de Foz Côa e é com esforço que equaciona uma ida conjunta ao cinema. Novamente, é graças ao PCP que podemos, aos domingos e feriados, ver gratuitamente um dos mais importantes trípticos de Bosch. Não será certamente graças a outro que veremos mais alargado o nosso direito constitucional à cultura, à fruição cultural e à criação.

1 Comment

  • R. C. Magrinho

    26 Junho, 2022 às

    Excelente artigo, Milene.
    As contas não enganam, povo culto é um luxo a que a burguesia que detém o poder, neste retângulo á beira mar plantado, não se dá. Os seus luxos são outros…
    Parabéns pela ironia fina do texto.
    Não se canse de escrever.

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