O discreto Caracazo haitiano*

Internacional

Dois meses. A revolta do povo haitiano estalou há dois meses e na comunicação social da classe dominante nem uma notícia. Talvez o critério editorial seja uma escala tanatológica de um para mil em que, para o Haiti ser notícia, é necessário mil haitianos mortos por cada morto estado-unidense. Mas hoje não há terramotos no Haiti e os rodapés dos telejornais voltarão a desfilar fait divers sobre celebridades, futebol, curiosidades avulsas, a grande questão nacional Santana versus Rio e um restaurante em Manchester que dá os restos aos pobres.

Entretanto, por todo o Haiti, o povo desafia nas ruas a proibição de manifestações contra o regime cleptocrata de Jovenel Moïse. O movimento que começou, em Setembro, quando foi apresentado o orçamento do Estado, como um protesto contra o aumento dos impostos e taxas sobre o trabalho transformou-se em mobilização nacional contra a doutrina neo-liberal, clamor pela soberania e exigência de demissão do governo de Moïse.

No poder há um ano, Jovenel Moïse, partido Tèt Kale, é apenas o último nome na longa lista de serventuários do imperialismo dos EUA que, desde o golpe de Estado com o selo CIA contra o governo democraticamente eleito de Jean-Bertrand Aristide, em 2011, se sucedem num caótico turbilhão de violência, miséria e privatizações. Moïse tomou o poder através de uma farsa democrática de um só acto eleitoral que, embora anémico (menos de 30 por cento dos haitianos votaram), exigiu o brutal esmagamento do movimento de massas. Depois de decapitar as duas agências anti-corrupção, Moïse deu o braço com o presidente do Banco de Desenvolvimento Interamericano, o guru neoliberal Luis Alberto Moreno e pôs em marcha a Caravana da Mudança, um bizarro circo que melhor pode ser descrito como um cruzamento entre um programa de austeridade, uma máquina de lavagem de dinheiro e um comício de demagogia itinerante.

Gosta do capitalismo? Vá para o Haiti!

As manifestações de massas sucedem-se, em Porto Príncipe, várias vezes por semana, apesar do Estado recorrer com crescente brutalidade à repressão. Na passada terça-feira, a título de exemplo, homens armados dispararam 24 tiros contra uma manifestação pacífica. As matrículas revelaram que os veículos dos atiradores pertenciam ao Estado. Mas nem as dezenas de detenções, nem os disparos, nem as provocações orquestradas pelo Estado estão a conseguir deter a luta das massas. Quando, no passado dia 21 de Setembro, Moïse tentou fazer uma demonstração de força, encabeçando uma parada militar na principal avenida da capital, uma chuva de pedras e garrafas obrigou comitiva do presidente a fugir. No dia 2 de Outubro, uma greve geral marcou a nova fase da luta, contra o neoliberalismo e pela demissão do governo, consciente da sua própria história.

Mais de duzentos anos depois da primeira revolta colonial e anti-esclavagista das Américas, o Haiti continua a pagar o preço do atrevimento. 60 por cento dos haitianos vive na pobreza e 25 por cento passa fome; 40 por cento é analfabeta e os um por cento mais ricos detêm tanta riqueza como os 45 por cento mais pobres; segundo a ONU é um dos países do mundo onde mais crianças são abusadas sexualmente. Mesmo ao lado da digna cuba socialista, inspiração de frequentes comparações absurdas e para onde os anti-comunistas mandam emigrar quem luta por um mundo mais justo, o Haiti apodrece. Infinitas vezes poderíamos responder «E você, gosta do capitalismo? Vá para o Haiti!»

À semelhança do Caracazo venezuelano de 1989, a revolta haitiana continua órfã de organização e liderança formal. O partido Fanmi Lavalas, do ex-presidente Aristide e a plataforma cindida da primeira organização, Pitit Desalin, do senador Jean-Charles Moïse, são as forças políticas mais influentes no movimento que permanece, contudo, essencialmente espontâneo. Como aconteceu com o Caracazo, a revolta haitiana não tem direito a primeiras páginas nem a prémios Sakharov. Mas até do mais discreto Caracazo pode florescer um Chávez.

*Primeiro esboço de um artigo publicado no jornal Avante! N.º 2292 de 2 de Novembro de 2017

1 Comment

  • Nunes

    4 Novembro, 2017 às

    Ainda ontem peguei num livro sobre Toussaint L'Ouverture e hoje dou com este texto valente e revolucionário. É o que se pode chamar de grande coincidência. Seguiremos atentos a este processo, ao mesmo tempo que Trump decide bombardear a Somália.

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