Das três condições à solução política actual

Nacional

Há quem diga que a “geringonça” – como lhe chama quem diz isso – teve a sua sementinha aqui, ainda em Setembro, quando Catarina Martins, pelo BE, dá uma primeira indicação sobre o diálogo com o PS, no estilo tradicional do BE de não hostilizar o PS e de dar até de barato que o PS será força maioritária.

Depois há quem diga que a solução política que actualmente observamos em Portugal e na Assembleia da República nasce aqui, quando Jerónimo de Sousa afirma que PCP e PEV rejeitarão o programa de Governo apresentado por PSD/CDS na Assembleia da República e avança que “PS só não formará Governo se não quiser”, em resposta a perguntas de jornalistas.

Mas a disputa para ver quem é mais geringonceiro é uma guerra que não compro, nem me parece interessar porque se remete a uma questão meramente temporal. Além disso, é uma disputa que só existe enquanto existir satisfação dos portugueses com esta solução política e que tenderá a desaparecer adiante, apesar dos inegáveis avanços que a solução proporcionou e proporciona ainda. A questão fundamental não é saber quando começou, mas o que é e que conteúdo político efectivamente tem e porquê.

Regressemos ao debate de Catarina Martins com Costa, em Setembro, onde o BE fixa três condições minimalistas para viabilizar um Governo PS, a saber: “A líder do Bloco lembrou que no debate televisivo com António Costa colocou três condições ao líder do PS para o BE poder viabilizar um Governo. Esse caderno de encargos passa pelo abandono, por parte dos socialistas, de três das suas propostas: congelamento das pensões, baixa da TSU das empresas e criação da figura do despedimento conciliatório.” Este caderno de encargos é fixado também pela Comissão Política do Bloco de Esquerda após as eleições de 4 de Outubro de 2015.

Umas horas antes, o PCP fixava como medidas urgentes e determinantes para o início de um diálogo:

– Valorização dos salários, designadamente o aumento do salário mínimo nacional para 600 euros em 2016, e do valor real das pensões de reforma;

– combate à precariedade, designadamente com alterações à legislação laboral e a aprovação de um Plano Nacional de Combate à Precariedade e a valorização da contratação colectiva;

– reposição dos salários, pensões, feriados e outros direitos cortados, designadamente os complementos de reforma;

– reforço e diversificação do financiamento da Segurança Social e reposição dos apoios sociais, designadamente no abono de família, subsídio de desemprego e subsídio social de desemprego;

– pelo reforço do Serviço Nacional de Saúde e do acesso à saúde com a contratação de médicos, enfermeiros e outros profissionais, reposição do transporte de doentes não urgentes e abolição das taxas moderadoras;

– uma política fiscal justa que tribute fortemente os grupos económicos e financeiros e alivie os impostos sobre os trabalhadores, os MPME’s e o povo;

– revogação da recente alteração à Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez.

Durante o processo de construção da posição conjunta entre PS e PCP para uma solução política também o BE foi acrescentando medidas a tomar. Ou seja, por força dos parâmetros introduzidos pelo PCP nas condições, também o BE foi evoluindo para condições mais exigentes.

Isto tem um significado político que vai muito além da questão temporal de quando surge o início da solução política actual e vai até além das posições conjuntas assinadas então. Julgo que será fácil, pela avaliação do percurso do BE e do PCP, concluir sem grande margem para subjectividade que o BE está muito mais próximo do PS do que está o PCP e também daremos como facto que o PCP é um partido com um historial de coerência que contrasta com a volatilidade do BE e com a sua mutação em função da hegemonia política e cultural do momento. Nem é preciso lembrar o papel do BE e Sá Fernandes na CML, nem mesmo o grupo de trabalho para a renegociação da dívida pública que o BE constituiu com o PS apenas para legitimar a posição do PS, colocando o próprio BE na contingência de chancelar a política de gestão da dívida do PS que é um verdadeiro garrote ao desenvolvimento nacional.

Portanto, também poderemos concluir que a imagem construída, pelo BE e pela comunicação social, com contributos do PS e de Costa, que consiste na ideia de que PCP e BE puxam o PS para a esquerda e para medidas de recuperação e conquista de direitos não é correcta. Basta olhar para o ponto de partida de cada um e ver, na verdade, quem puxou quem para onde.

Não é PCP e BE que puxam PS, é PCP que puxa BE e PS.

Este não é um texto de puxar galões, é uma reflexão sobre a arquitectura da solução política e a geometria parlamentar e sobre como, em termos de conteúdo, se comporta cada partido e porquê. Independentemente de existirem medidas nos orçamentos do estado introduzidas pelo BE e pelo PS que resultam de facto de negociações entre esses dois partidos, é legítimo perguntar se essas medidas existiriam num contexto de BE e PS como maioria parlamentar, é lícito questionar se o BE teria ido mais longe do que as suas três primeiras condições básicas acaso o PCP não introduzisse um vasto conjunto de outras matérias no debate, puxando as condições para um campo mais “à esquerda” (termo que me coloca as maiores dúvidas mas a que recorro por facilitismo assumido).

Estas questões estendem-se a muitas outras dimensões da vida política nacional, além da solução política actual. O próprio comportamento do BE, a sua cada vez maior aproximação a temas laborais, a sua aproximação a discursos que antes considerava “soberanistas” como a “preparação de Portugal para a saída do Euro”, entre outros – furtos do seu oportunismo e tacticismo evidentemente – surgiriam no contexto de inexistência da presença parlamentar do PCP tal como existe hoje?

A matriz do BE é próxima da matriz do PS, com as diferenças naturais entre dois partidos sociais-democratas, de organização e método burgueses mas com composições e enraizamentos diferentes. Já a matriz do Partido Comunista Português é radicalmente distinta. Num cenário de libertação de PS/BE do PCP, ou seja, num cenário em que o PCP não fosse necessário para a construção de uma solução, de que forma se comportaria o BE?

O PCP não se posiciona mais à esquerda porque existe BE, nem mais à direita porque existe PS. O PCP tem o seu património de intervenção e reflexão próprio, tem a sua estrutura de partido marxista-leninista e uma perspectiva revolucionária sobre a realidade política que o tornam um partido independente, não apenas como organização mas também no seu posicionamento. Sempre livre mesmo quando amordaçado, sempre revolucionário mesmo quando amarrado. É essa força que faz nas ruas e nos locais de trabalho o empenhamento transformador de milhares e milhares de jovens, trabalhadores e pensionistas, é essa força da luta que dá volume à intrusão parlamentar que é a de um partido operário numa assembleia burguesa. E esse é o conteúdo e o pendor ideológico e político que interessa muito além das disputas de quem iniciou o quê.

Porque a solução política aventada por Catarina Martins no debate com Costa em Setembro, precede no tempo as posições do PCP – o que significa que o PCP não efabula com resultados dados como adquiridos, mas não precede no conteúdo absolutamente nada.