Os filhos do Condor

Internacional

Quantos urubus sobrevoam hoje a República Bolivariana da Venezuela?

Enquanto que o processo bolivariano levou educação, cultura, alimentação, trabalho, habitação a milhões de venezuelanos, a grande burguesia nacional viu ameaçados os seus privilégios como nunca antes. Estava habituada a conviver lado-a-lado com os maiores barrios do mundo (favela), mas sempre protegida pelos seus para-militares e sempre dominando os sistemas de produção e distribuição. A opulência nunca foi ameaçada durante todos os anos em que a aliança entre a grande burguesia venezuelana governava o território venezuelano como capataz dos grandes grupos económicos e da administração norte-americana.

Antes de 1999, o exército venezuelano tinha entre as suas patentes, oficiais dos Estados Unidos, a CIA tinha um gabinete no parlamento nacional e o barril de petróleo era vendido a 1 dólar para as companhias norte-americanas. Manter esse estado de coisas era tarefa dos governos a mando do norte, recompensado pela bondade dos EUA, fazendo dos capatazes e corruptos os ricos mais ricos da Venezuela. É verdade que essas camadas da burguesia não perderam grande parte dos seus privilégios, mas não é menos verdade que o processo bolivariano lhes retirou uma parte importante da sua influência na capacidade de decisão política e também uma boa parte da sua influência na economia.

Tomemos por exemplo o caso do açambarcamento de alimentos e bens que a burguesia levou a cabo nos últimos anos, com particular intensidade durante a agitação terrorista de 2017 e que agravou a escassez de alimentos e outros bens no território nacional venezuelano: o Governo dinamizou em menos de um ano, 31 mil comités locas de abastecimento público que distribuem a alimentação produzida pela empresa nacional central de alimentação, recém-criada. Ou seja, perante o boicote económico pensado e executado pela burguesia nacional e estrangeira, o Governo Bolivariano e o poder popular da Venezuela contrapuseram a produção e distribuição, rompendo com o esquema de distribuição capitalista, satisfazendo as necessidades mais básicas da população e assegurando a manutenção dos baixos índices de sub-nutrição que caracterizam a evolução democrática do país desde 2000.

O conjunto de missões (projectos apoiados pelo Governo) que agora integrarão a constituição como resultado do trabalho da assembleia constituinte eleita com a participação de oito milhões de venezuelanos consolida um trabalho que, no dia-a-dia do país e ao contrário do que o coro de mentirosos abutres propagandeia por todo o mundo, assegura serviços básicos e avanços concretos.

Na Venezuela, como pequenos exemplos (entre muitas missões), a Gran Misión Vivienda assegurou um milhão e seiscentas mil novas casas para famílias dos barrios; a Misión Barrio Nuevo, Barrio Tricolor distribui a todos os habitantes dos bairros a ferramenta e o material de construção necessário para assegurar a dignidade da habitação mesmo na favela; a Gran Misión Barrio adentro leva cuidados de saúde a todos os habitantes das favelas; a Misión Robinson que distribui um número impressionantes de obras literárias gratuitas a todos os venezuelanos e mobiliza vários meios de alfabetização por todo o território; a Misión Arból que apoia a educação ambiental e promove o cuidado popular dos bosques e florestas; a Misión Nevado assegura os cuidados a todos os cães errantes e sem dono, e também a muitos gatos, através da distribuição de alimentação e da vacinação e esterilização de todos os animais; a Misión Alimentación garante a produção e a distribuição de comida por todas as famílias da Venezuela, mesmo no contexto de escassez provocado pelo açambarcamento. Mas muito mais missões compõem um programa de democracia popular e comunal que se conta entre uma das mais importantes, senão a mais, das experiências contemporâneas de democracia participativa e popular.

A questão, todavia, é a mesma de sempre: a luta de classes e a sua disputa nos diversos territórios. A Venezuela é hoje uma ameaça global para o avanço do capitalismo e do imperialismo, uma ameaça para a hegemonia política, económica e cultural dos Estados Unidos sobre o continente americano. Uma ameaça concreta, não só pelo que realiza no seu próprio território e como valoriza o ser humano na plenitude das suas dimensões, mas também pelo esforço tremendo que exerce para garantir a outros países da América Latina e Caribe o acesso a cuidados de saúde, a petróleo e energia baratos, e como constrói com esses povos um novo espaço de cooperação à margem do domínio imperialista dos Estados Unidos.

Essa luta de classes é tão velha quanto as classes e durará enquanto as classes existirem e tem imposto sobre a Venezuela uma guerra económica baseada na experiência do bloqueio a Cuba, acompanhada de uma intervenção militarizada da grande burguesia através principalmente do recurso à delinquência a soldo. Em nenhum outro país do mundo seria aceitável que fosse quem fosse se armasse de explosivos e projécteis, de capacetes e escudos, para partir, destruir, ameaçar, saquear, pilhar e perturbar a legalidade constitucional. Em nenhum outro país do mundo seria normal assistir a que tudo isso acontecesse sem que a polícia carregasse violentamente sobre esses grupos terroristas organizados que combinavam, todos os dias de madrugada, com os principais meios de comunicação o horário e a localização dos distúrbios a promover em cada dia.

A verdade é que em todas as imagens difundidas pela comunicação social dominante para ilustrar a violenta ditadura venezuelana se vê um grupo de terroristas de cara tapada, armado, violento, atacando as forças policiais, rodeando muitas vezes os deputados da oposição de direita, fascista e proto-fascista. A verdade é que em nenhuma imagem ou filmagem surge uma carga policial. A verdade é que foi ateado fogo a 20 cidadãos por serem supostamente Chavistas e que 9 morreram dessa forma. A verdade é que nenhum terrorista morreu queimado pelas forças policiais ou por qualquer manifestação chavista. A turba violenta e terrorista a soldo da CIA e da grande burguesia venezuelana organizou juntamente com a oposição “democrática” toda a sua intervenção com o objectivo concreto e explícito de provocar uma intervenção estrangeira em território venezuelano. O que a comunicação social nunca mostrou foi a diminuta dimensão desses “protestos”, ou a sua violência intrínseca, ou a sua limitação territorial a um bairro de Caracas, Chacao, distrito dirigido por um político da “oposição”. O que nunca mostraram foi a ligação entre os principais rostos da oposição aos interesses económicos, como a querida e jovem Lilian que aparece como heroína sem se referirem as suas ligações aos grandes grupos económicos e aos grandes nomes dos partidos de direita. A criação de um clima mediático de permanente instabilidade e de violência em torno da existência de uma suposta ditadura visava criar no panorama internacional uma percepção pública – bem nos termos do livro “da ditadura à democracia e alinhado com as tácticas dos EUA e de George Soros – que justificasse a utilização da força e que legitimasse a intervenção militar dos EUA, tal como aliás foi tão usual nas várias “primaveras” que destruíram estados inteiros e vergaram povos ante a miséria e a guerra por todo o mundo. A prova disso é o facto de terem sido os próprios porta-vozes da direita a solicitar aos EUA a intervenção militar, intervenção essa que Trump chegou a afirmar como possibilidade real contra o Governo Bolivariano.

Perante a reacção de todos os países da América Latina a essa possibilidade de intervenção militar, os EUA decidiram optar pelo velho método da guerra económica aplicando três sanções à Venezuela (seguidas por outros países e em vias de serem seguidas pela UE) e dezenas de sanções pessoais a vários titulares dos órgãos de soberania da república, arrogando-se donos da moral e da ordem mundial e polícias, juízes e carrascos em nome de todo o mundo e sob jurisdição global. Os EUA proibiram a Venezuela de negociar em dólar, o que impede o acesso da Venezuela ao mercado do petróleo, sendo que o petróleo é negociado nas praças mundiais em dólares. Ou seja, a Venezuela tem o petróleo mas não o consegue colocar nas praças porque não pode receber dólares pelo petróleo vendido. Ao mesmo tempo, os EUA proibiram a Venezuela de contrair dívida pública em dólar, ou seja, impede a Venezuela de gerir a sua própria dívida sendo que o mercado da dívida pública é dominado globalmente pelo dólar. É importante ressalvar que a Venezuela nunca falhou os seus pagamentos de dívida. A última das três principais sanções é a da proibição de distribuição de dividendos ao Estado pelas empresas públicas venezuelanas, o que representa um confisco internacional ilegal. Isto significa que nenhuma empresa pública venezuelana que actue em território estrangeiro pode fazer pagamentos de dividendos ao Estado Venezuelano porque tais dividendos têm de passar por contas bancárias internacionais do Estado e estão bloqueadas e congeladas. Portanto, a Petróleos da Venezuela não pode enviar para a Venezuela os lucros das suas plataformas em off-shore ou das suas refinarias no território estrangeiro.

Essa guerra económica não é uma consequência da situação social na Venezuela, mas bem pelo contrário: é uma parte importante da sua causa e origem.

A promoção da ideia de que a Venezuela Bolivariana é uma ditadura é conveniente dos vários urubus que sobrevoam o povo venezuelano, enquanto mina o seu sucesso aguardando que se vença em cadáver para que distribuam entre si os restos da carcaça como fazem por todo o globo, como fizeram no Iraque, na Líbia, na Síria e num sem número de outros países devastados pela guerra e pelo imperialismo. Os urubus do direita .net acompanham os urubus da comunicação social, que acompanham os urubus da União europeia que comem na mão do grande condor norte-americano. Condor aliás que dá nome a uma operação de submissão e destruição da América Latina e que apesar de ser animal andino pleno de dignidade não deixa de ser portador dessa característica tão ilustrativa do que são os EUA que é ser necrófago.

O Bloco de “Esquerda” acompanha certamente a atribuição do prémio Sakharov à chamada “oposição democrática” da Venezuela e aplaude a metodologia terrorista dessa “oposição” agora premiada. Os Estados Unidos aplaudem a União Europeia e agradecem todo o apoio do BE.

Ao contrário do que o artigo do direita . net já referido atrás diz, mentindo, não é verdade que a CNE venezuelana nunca tenha chancelado os números de eleitores para a constituinte. Claro que o BE mente habilmente e fala de 8.3 milhões de votos e depois diz que em lado nenhum a CNE (Conselho Nacional Eleitoral fala desse número. Claro que não porque esse número não é real: o número real é de pouco mais de 8 milhões e é fácil encontrar aqui.

Mas o que é importante nesse artigo não é a mentira. É a forma como demonstra bem o alinhamento do BE com as orientações fundamentais do imperialismo, contribuindo objectivamente para o coro de urubus que aguarda a queda do processo bolivariano e a recuperação plena dos privilégios. Esses terroristas que planeiam e táctica de perturbação e a agressão externa e que impõem a violência aos venezuelanos contam com a União Europeia e o BE, já se sabe. Mas o que daí resulta é que em cada uma das mortes na Venezuela, em cada derrota do poder popular, estão as mãos e a responsabilidade de todos os mentirosos do mundo, da dita esquerda ou da direita.

São muitos os urubus que sobrevoam em círculo o Estado Bolivariano. São mais os venezuelanos que resistem e mostram ao mundo que um povo pode caminhar com dignidade, levantando-se da lama a que foi sujeito durante séculos – pelo colonialismo espanhol, depois pela sujeição aos EUA – sem agredir outros povos e defendendo os seus, em luta pela paz, pela vida. E os urubus, por enquanto, não comem vivos.

1 Comment

  • daciano seixas

    26 Outubro, 2017 às

    NOTÁVEL! Analise sistemática, incisiva, lúcida. VERDADEIRA. Um abraço. dacianojose[at]gmail.com

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