O eclipse da sociedade

Nacional

Onze de Agosto de 1999, o advento de um eclipse total solar, porventura o último do milénio, e com observação parcial em Portugal (62%-77%, Faro-Bragança) é motivo de grande euforia para a população em geral. Oportunidades destas, embora não tão raras como se possa pensar, representam a altura ideal para a divulgação da ciência, aqui em particular da astronomia. Esta ciência natural que estuda os corpos celestes encontra-se entre as mais famosas para um público leigo, ainda que seja muito mais provável (leia-se muito x10^13) encontrar tretas inventadas sobre astrologia do que um bom texto sobre astronomia em qualquer jornal ou programa de televisão. Tal interesse é patente na antiguidade que a astronomia tem, pela força da observação no grande observatório que é a Terra e a sua influência directa sobre as nossas vidas (falo das marés, estações do ano, etc. e não do destino traçado para um desgraçado caranguejo com ascendente em Marte!), não fosse mesmo culturas pré-históricas terem deixado inúmeros artefactos e construções (Stonehenge por exemplo) relacionados com a observação da movimentação dos corpos celestes, mostrando como é antiga a vontade de perceber o que se passa na esfera celeste.

Desta euforia nasceram inúmeros debates, exposições, campanhas, encontros, entre outras acções com o intuito da divulgação científica, por um lado, e da preocupação em torno das precauções que se devem ter quando se observa um fenómeno desta natureza, por outro. O Sol é uma estrela igual a muitas outras que observamos no céu nocturno, tendo no entanto a particularidade de se encontrar extremamente perto da Terra quando comparada com as outras (a seguinte mais próxima encontra-se a uns longínquos 40.000.000.000.000 quilómetros (=4×10^13 km), denominando-se assim por Próxima Centauro) estando por isso reservada a enormes cuidados na sua observação, sob risco de se danificar de forma permanente os olhos. Uma extensa campanha de informação, a par da iniciativa de se vender em todas as farmácias óculos de observação directa (que se devem utilizar por períodos inferiores a 30 segundos seguidos de descanso ocular de 3 minutos), permitiu que o eclipse fosse observado por muitos, com riscos mitigados para a saúde pública. Saúde pública é isto mesmo, prevenção! Um serviço nacional de saúde deve ter como aposta fundamental a promoção da saúde e a prevenção da doença. Divulgação científica é também isto, garantir à população em geral acesso grátis e continuado de conteúdos científicos.

Vinte de Março de 2015, o advento de um eclipse total solar, com observação parcial em Portugal (62,3%-71,7%, Faro-Bragança), é um facto ignorado pela população em geral. A Direcção Geral de Saúde não considerou prioritário a massificação do esclarecimento dos riscos de saúde que acarretam a observação directa do Sol, muito menos a disponibilização dos tais óculos de protecção. Os meios de comunicação encaixotam as notícias em notas de rodapé, fazendo aliás um grande favor à DGS que pede para que a notícia não se espalhe, não vá o diabo tecê-las, e descobrir-se a sua negligência grosseira. Da sociedade em geral vê-se mais um sinal da, já por demais, evidente destruição do tecido que a compõe, resignando-se as várias instituições à cultura do pobrezinho, tão cara a Passos, Portas e restante governo. Já vejo Pires de Lima a comentar, quando inquirido sobre o eclipse, que o que era bom era pôr astrónomos nas empresas para produzirmos mais eclipses, ou Passos a dizer que não comenta, pensando que mais uma vez se pergunta sobre o eclipse das suas contribuições fiscais e obscurantismo das declarações de rendimentos, ou Portas a afirmar que a Remax dá mais emprego que Observatório Astronómico de Lisboa…

Para trás fica a pertinência, em centenário da teoria, e passados 10 anos do centenário do annus mirabilis de Einstein, de se explicar como foi durante um eclipse solar que uma das mais significativas previsões da teoria da relatividade geral de Einstein foi verificada, ou como Copérnico apresentou o seu modelo matemático heliocêntrico, já levantado como hipótese 1800 anos antes mas abafado pelo pensamento dogmático religioso. Dois momentos históricos para o conhecimento humano!

Este eclipse é bem um sinal dos tempos, embora sem qualquer significado divino ou interpretação esotérica, põe a nu o empobrecimento geral a que estamos votados pela opressão das inevitabilidades. O que dizer de uma sociedade que podendo erguer a cabeça e observar o astro-rei “coberto” em mais de metade da sua superfície pela Lua, anda distraída a olhar para o chão?

* Autor Convidado
Tiago Domingues