“O futuro é revolucionário ou reacionário? Terra, o desequilibrismo disso…!” – por Joana Manuel

Nacional

Intervenção no debate “Portugal. E o futuro?”, comissariado por Cristina Peres e Pedro Santos Guerreiro, a 26 de Abril de 2014 no São Luiz Teatro Municipal

Em Itália o dia 25 de Abril é um feriado estranhamente próximo e afastado do nosso. Próximo porque é também o “dia da libertação” dos fascismos que marcaram o século XX. Distante por tantas outras razões. Não corresponde a um dia, mas a uma convenção, em que se celebra especificamente a libertação de Turim e de Milão — até 1 de Maio libertou-se a restante região norte, até Veneza. A libertação de um fascismo de 20 anos e o fim de uma guerra de cinco, uma guerra onde se soube que se participou — do lado errado. Clara e assumidamente o início de um processo, até ao referendo que decidiu que a Itália seria, não uma monarquia, mas uma República Constitucional. Ainda hoje se repete em Itália, em cartazes, em pancartas, em graffittis: la liberazione è un esercizio quotidiano. A libertação — ou a liberdade — é um exercício quotidiano.

O nosso 25 de Abril é tão forte como aquele. E simultaneamente mais frágil em muitos aspectos. Em muitos discursos (e uso a palavra discurso no seu sentido lato e não no seu sentido-comício), o nosso 25 de Abril facilmente se reduz a um dia só. E isso é injusto. Injusto para o que está para trás, quarenta e oito anos de lutas várias contra uma ditadura duríssima, e injusto para o que está para a frente, quando se pretende que o ponto em que de repente — de repente? — nos encontramos é o resultado do caos inerente às conquistas das liberdades. Injusto quando o reduzimos à conquista da liberdade de expressão, como se tudo o resto não fosse liberdade também: a paz, o pão, a educação, a saúde, a habitação, como tão bem esteve explanado — e praticado desde o primeiro momento — no programa do MFA. Sim, havia um programa, e sim, ainda hoje, passar o olhos por ele é um bálsamo, uma esperança, uma agridoce interrogação. Uma sensação de que o futuro passou por aquele presente e tivemos medo de o agarrar. Ainda hoje. Hoje, provavelmente, mais do que em qualquer momento dos últimos 40 anos.

Diz o Nuno Bragança, ou o seu alter-ego Aníbal, a páginas tantas do romance Square Tolstoi, editado em 1981 mas vivido entre o exílio literário em Paris e o trabalho clandestino nos anos anteriores à revolução — os anos em que aquilo a que os marcelistas chamaram primavera já cheirava tanto a outono como as primaveras que andamos a viver desde 2010 — onde é que eu ia?, diz Nuno “Aníbal” Bragança no capítulo 10 da Parte II de Square Tolstoi:

“Em cada dia dessas férias dei longos passeios pela floresta, abismado em jóias de Portugal-por-dentro trazidas da Biblioteca Gulbenkian da Avenue Foch. Muito mais do que matéria para escrita minha, eu encontrava nesses textos chaves do meu próprio modo de ser — enquanto português. E entrevia com progressiva nitidez que o principal obstáculo em que Portugal embatia era a lusitana ignorância colectiva do colectivo português. Nenhuns dados do presente, por mais rigorosos e completos, bastariam para equacionar correctamente esse presente. Porque havia um passado nacionalmente recalcado que agia ininterruptamente no quotidiano português. (…)”

E eu fico a olhar para este parágrafo e fico a olhar para esta pergunta que fazemos hoje e não sei se me angustia ou me diverte não ter nem pista de resposta. O futuro é revolucionário ou reacionário? E o que é o futuro, o que foi o passado, o que é o presente? Nuno Bragança, descendente de Dom Pedro II e morto desde 1982, é revolucionário ainda hoje, no conteúdo e na forma. Como é revolucionário no conteúdo e na forma o programa do MFA, saído de capitães-cabais-exemplos daquilo a que se pode chamar o “proletariado esclarecido” e morto ou adormecido há tanto tempo como o Nuno Bragança. Como temos visto ao longo da História que o futuro o presente e o passado coexistem constantemente, de forma por vezes violenta. Há dois dias, na noite de 24 para 25 de Abril, aqui ao lado, onde se habita o paço do duque, havia uma senhora à varanda a acenar contente enquanto à sua porta se colava uma placa que rezava “aqui foram torturadas e assassinadas pessoas” e se gritava “25 de Abril sempre!” Confesso que não consegui perceber se aquela pessoa que vive na sede da PIDE — rebaptizada com um nome do passado para parecer aceitável no presente — estava a ser sarcástica, cínica, sincera ou tonta. Sei que eu, que vivo no país de hoje e vivo cheia de perguntas, lhe desejei sinceramente muito poltergeist no conforto do seu lar. Um pouco como sinto um poltergeist que nos persegue a cada discurso de Cavaco Silva ou a cada medida do Portas de Coelho. E só me apetece gritar, como a Mafalda ao caranguejo: “O futuro não é para esse lado!”

Dou por mim muitas vezes a notar que muita gente leu o José Gil e teve uma epifania incompleta: reconheceu perfeitamente o diagnóstico… nos outros. E olho em volta — e em volta estou eu incluída — e o que vejo é que temos muitos anos de um condicionamento muito perverso, que devora a acção como devora o debate e a partilha — ou o confronto — de ideias. Tendemos a sofrer de uma autoflagelação que muitas vezes se concretiza em ódio ao outro. Além de que somos bombardeados com o discurso de que somos incapazes. E convencemo-nos disso, de que somos incapazes. E enraivecêmo-nos com isso. Mas tentamos reprimir a raiva que esse autoconvencimento provoca: facilmente repudiamos a raiva — que a meu ver é saudável, muito saudável — e substituímo-la por ódio, muito mais perene e muito mais pernicioso. E não temos uma cultura democrática enraizada. Não temos. Falo mesmo no plano pessoal. O que faz com que muitos debates que começam por ser frutíferos degenerem facilmente na fulanização e na agressão, mesmo que apenas verbal. Porque apesar de nos agarrarmos ao mito dos brandos costumes, nós somos um povo bastante violento. E o sangue que se diz que não derramamos parece consubstanciar-se demasiadas vezes nas relações pessoais e políticas. É o resultado de um cocktail explosivo entre uma cultura muito católica mas muito pouco cristã e uma ditadura de meio século que foi forte ao ponto de durar até hoje no espírito colectivo.

Sempre conheci no meu pai um comunista. Com cartão e tudo. Desde que nasci. Mas cheio de contradições entre o que pensava, o que sentia, o que temia, o que viveu. E como toda a sua geração, o meu pai foi mobilizado, mas com mais sorte que muitos — talvez por já não ser assim tão criança, porque toda a guerra é uma cruzada feita à custa de crianças — não chegou a embarcar, ficou em Lisboa, como enfermeiro na unidade de infecto-contagiosas. E durante trinta anos da minha vida o ouvi contar, com raiva, como desceu em parada a Avenida “com aqueles filhos-da-puta na tribuna”, leia-se, Salazar e Tomás. E houve um dia em que a história se repetiu, mas com uma pequena nuance… Talvez graças aos filtros que caem com a idade. Uma vez mais ia ele “a descer a Avenida, em parada, com aqueles filhos-da-puta na tribuna… quer dizer… filhos-da-puta não, que na altura eram heróis.” E de repente houve luz em muitos recantos escuros do meu pai revolucionário, amante e defensor da liberdade, militante sempre com a cabeça a mil, a aprender, a pensar, a construir-se — e a fazer asneiras e acertos quotidianos. A vida é feita de escolhas, nós somos feitos de escolhas. Mas há coisas em que nascemos e vivemos imersos. E quando escolhemos temos de ter coragem de nos lembrar disso. Foi o que aprendi com o inesperado director’s cut daquele pequeno filme do meu pai. Isso e que passamos a vida em montagem e remontagem dos nosso próprios filmes interiores.

Há poucos anos uma cineasta portuguesa, a Susana Sousa Dias, fez um filme-tsunami que galgou o mundo e recebeu prémios a eito, entre os quais o primeiro prémio do festival Cinéma du Réel do Pompidou. O filme chama-se 48 e é uma obra avassaladora, novamente em forma e conteúdo, onde se joga com a imagem estática das fotografias de cadastro dos presos políticos e com o som das suas vozes a contar, sem rodeios, o que era a tortura, concreta nos seus corpos físicos. Mas antes do 48 havia já o Natureza Morta, onde a Susana explora a imagem de arquivo dos longos anos da ditadura, imagem que tornava sua ­— ou nossa — pela montagem e pela manipulação. Entre os olhos de meninos africanos obrigados a dançar de roda enquanto soldados portugueses batiam palmas em seu redor e as procissões tenebrosas num Portugal escuro onde nem burkas faltavam a grupos de mulheres de olhos no chão em redor do andor, duas imagens-símbolo me ficaram gravadas: a de um pequeno macaco a vir comer a uma mão humana em África e a de um ramo de cravos a ser enfiado à força numa caixa de correio, esmagados quase para lá caberem. Dois filmes, dois exercícios estéticos admiráveis que numa conversa sobre o assunto nos deixaram, a mim e a duas outras pessoas, uma portuguesa e outra francesa, a comparar o grau do seu poder perturbador. Muito gostamos nós de comparar o incomparável. E obviamente o 48 é altamente perturbador, os relatos escutados olhos nos olhos das fotografias, as descrições violentíssimas, física e psicologicamente, o trabalho da imagem e do som. Mas quando alguém a meu lado afirmou que o 48 era mais perturbador que o Natureza Morta, a minha reacção foi imediata: nem pensar! E nem pensar por uma muito simples razão: em 48 é-me claro quem é “o outro”, é-me fácil dizer que o prisioneiro sou eu e o torturador é o pide. Em Natureza Morta não tenho essa defesa. Tudo aquilo é “o outro”. E tudo aquilo sou eu.

Há dois verões atrás andei pela primeira vez para lá da velha “cortina de ferro”. E visitei dois museus que, embora muito diferentes, me marcaram bastante: o Museu do Comunismo em Praga, e a Casa do Terror em Budapeste, o edifício da Gestapo que depois foi aproveitado pela polícia secreta do regime dito comunista na Hungria — sim, tornou-se museu em vez de condomínio de luxo, vejam lá o devaneio. E o que vejo não é ideologia, é Poder, uma forma de concentrar o Poder diferente daquela usada no dito “mundo livre”, mas a mesma sede de Poder que despreza aquilo para que a política é feita: as pessoas. Isto não é assunto para uma intervenção nem para um debate, e sim para várias teses, mas a verdade é que nunca achei que as ideologias de esquerda fossem bíblias revelada nem que o “homem novo” se construísse por decreto. O século XX foi extraordinário também por isso, porque não se pode ler apenas O Capital, é preciso ler Freud e Jung e a Sabine Spielrein e o Arno Gruen discorrendo sobre A Loucura da Normalidade, e o Outono Alemão do Stig Dagerman, e o Kurt Vonnegut e o Wilhelm Reich e os dramaturgos e os filósofos e os poetas. Porque o “homem novo” não se constrói de facto por decreto e não podemos interpretar o ser humano com base no que ele deveria ser, mas com base no que ele é.

E é também por isso continuo a ser marxista e creio que nunca deixarei de o ser. Porque deve haver sempre uma responsabilização individual, sem dúvida, mas também é absolutamente verdadeira a premissa que diz “mude-se o mundo e o ser humano mudará”. Quando em 1990 o Nouvel Obsérvateur perguntou a Marguerite Duras que valor achava ela fundamental que a Esquerda defendesse, Duras respondeu: “para além de restabelecer a luta de classes, não estou a ver.” E eu também não estou a ver. Não acho que se possa clamar por responsabilidade individual quando se vive na miséria, quando não se sabe se se conseguirá comer amanhã ou comprar o medicamento que nos permite sobreviver, quando não se tem acesso à escola e ao pensamento, quando não se tem mundo e se tem medo do mundo e se troca facilmente uma janela aberta por um estatuto. Porque com fome não há pensamento, sem tempo para pensar não há pensamento, porque quando toda uma sociedade é construída no sentido de atordoar o indivíduo, então temos uma dormência colectiva e não podemos voltar a cara à realidade e dizer que “àquelas pessoas”, aos “outros”, falta responsabilidade individual, respeito pelo outro e relação com as suas próprias emoções. Pois, pudera. Não podemos de repente passar o juízo desdenhoso de que houve mais gente no Marquês depois do Benfica-Olhanense do que ontem de cravo vermelho na mão. Primeiro, porque não houve. Segundo porque se houvesse, a constatação não era nova, não acrescentava nada, era espúria. E não me descansa mais que não saiamos à rua para reclamar o que é nosso como comunidade, não porque ficámos a ver futebol mas porque ficámos a ler Dante traduzido pelo Vasco Graça Moura. Não, não me descansa. Muito facínora ouviu Wagner. E eu também o oiço.

Isto para dizer que as mentalidades — como os actos, os de hoje, os de ontem e consequentemente os de amanhã — são efeito de muita coisa, inclusivamente das pré-programações. As próprias pré-programações não nascem do nada, mas das características que fragilizam o ser humano, a sua capacidade de lutar e o seu carácter. A necessidade de sobrevivência e a falta de horizontes alimenta o pior que nós temos e o pior que nós temos alimenta a falta de horizontes e a necessidade cega de sobrevivência. É um ciclo vicioso. É preciso saber quebrá-lo. E é preciso escolher onde se quebra. Volto à premissa: mude-se o mundo e o ser humano mudará. Daí a filosofia não servir para tudo. Daí a política ser espúria sem filosofia.

Regresso ao Nuno Bragança e ao Square Tolstoi. No final da mesma Parte II, Aníbal consegue entrar num avião de regresso a Paris com um charro feito e uma pasta cheia de informação militar que era “suficiente para tortura muito muito séria, daquela que só não deita abaixo quem é d’Aço, e eu sabia que era de carne e osso, com pele macia e tudo”. E já na segurança da viagem — ou das viagens, porque ainda se fumava nos aviões —Aníbal começa então…

“a entrever até que ponto cada ser humano — cada pessoa, raios — tem de comum com a árvore e as raízes, o tronco e a copa com ramagens de folhas muitíssimas e tenras, feitas para a captação da luz solar. Raízes mergulhadamente em busca dos sucos primitivos, tanto da humanidade como da própria história pessoal (é o mesmo). O corpo tronco prolonga-se ofertando ao Alto umas extremidades ultra-sensíveis, ultra-quebradiças, frágeis insubstituíveis de maravilhosas.

Com uma diferença. É que enquanto o vegetal tem o seu equilíbrio naturalmente garantido, a pessoa precisa em cada instante de se esforçar por não depender da copa a ponto de deixar estiolar raízes, nem depender destas até não saber aproveitar a copa. (…) Durante alguns momentos fiquei como que suspenso sobre o vácuo. Porque vi o meu próprio ser humano sob a forma da árvore que é. Céus, Terra, o desequilibrismo disso.”

No 25 de Abril de 1945, em Itália, acabaram 20 anos de fascismo e de uma guerra em que se soube que se esteve — do lado errado. Aqui por vezes nem o racionamento nem a fome nem os três dias de luto nacional pela morte de Hitler nos convencem de que nenhum salazar nos salvou da guerra, antes a vivemos prolongada e bem para lá do prazo da História. E hoje, em 2014, temos como chefe de estado uma personagem que parece um resto de Américo Tomás enxertado de Oliveira e que, com a mesma arrogância com que negou a pensão a Salgueiro Maia ao mesmo tempo que recompensava o agente da PIDE que da janela aqui ao lado matou gente em 25 de Abril de 1974, diz da tribuna da Assembleia da República, com cravos vermelhos à frente, que o 25 de Abril não tem donos nem é arma de arremesso. Mas o 25 de Abril tem donos. Só não tem Dono. Mas tem donos, porque tem destinatários e tem autores. E como hoje me dizia um amigo constantemente em busca de novas gramáticas, “isto não pode ir tudo para o copyright”. É preciso portanto reclamá-lo, possuí-lo. E eventualmente arremessá-lo. A Libertação é um exercício quotidiano. E Céus, Terra… o desequilibrismo disso!

* Autor Convidado
Joana Manuel