Que festa é esta, pá?*

Nacional

Olha, desculpa lá que me intrometa… mas não pude deixar de ouvir o que estavas a dizer.

É a tua primeira Festa? Pois, então é compreensível. Sabes que apreciar esta festa, tem muito que se lhe diga, a sua arte, o seu mistério. Mas olha, isto não é nada como o Super Bock Super Rock. Esta é a festa do Partido Comunista e do seu jornal, que dá o nome à festa: o periódico do mundo inteiro que mais tempo sobreviveu na clandestinidade. É qualquer coisa, hein?

Ao contrário dos festivais de Verão, tudo o que aqui vês foi feito por militantes comunistas à força de trabalho voluntário. Consegues imaginar quantas horas foram precisas para montar tanto ferro, para pintar tantos murais, para organizar tudo tão bem? Estás numa cidade inteiramente movida a sonhos e erguida de ideais. É por isso que é tão bonita. É por ser a festa dos comunistas que ela é como é: um lugar onde a toda a hora se ouvem coisas, noutra parte estranhas, como «Fica aqui pá, que eu vou ali a Aveiro perguntar se eles precisam de ajuda» porque é a gente que quer dar e sem receber nada em troca, a não ser a garantia dialéctica de que a causa é justa e a certeza empírica de que quanto mais dermos todos, mais ricos também todos seremos. Não acreditas em mim, não é?

Então repara nas pessoas que aqui trabalham: estás a ver aquele camarada ali? É pedreiro no Porto e aquela miúda mais nova trabalha num Pingo Doce em Évora. E aquele velhote é professor catedrático. Aventais, T-shirts, sorrisos amplos, gestos generosos: não se vêm diferenças – são tão iguais como em nenhum outro lado são. Porque valem o mesmo com aquilo que podem dar, porque o trabalho de todos beneficia a todos também.

Esta Festa é feita destas coisas. Estás a ver aquela gente toda ali sentada no chão? Está à espera da orquestra sinfónica que daqui a nada começa. É o teu povo, ali à espera de Beethoven: os médicos e as empregadas domésticas e os vendedores e os camponeses, com os estudantes e os reformados. Quantas vezes por ano é que achas que esta gente ouve Beethoven ao vivo? Alguns nunca o puderam fazer. Mas agora que vibram as primeiras notas através do calor da noite, vêem-se olhos proletários a cerrar e extraordinários sorrisos a florir. A Festa é também esse feitiço e esta lição de democracia.

Por isso olha bem à tua volta: é esta a prova provada que é possível viver de outra maneira. Num mundo diferente. Durante três dias, aqui estará de pedra e cal, para quem quiser ver que a veja, a cidade sem muros nem ameias com que o Zeca sonhava, a terra sem amos pela qual os communards morreram. E sente-se o seu espírito em cada palavra doce, em cada acto gentil. Terra onde amiúde se ouve: «queres um bocadinho de água camarada?»; «não, não. O troco fica para o nosso partido»; «a senhora não se quer sentar?»; «esta pago eu» e também muitos «gosto muito de ti, pá». Terra de tanta fraternidade, que ao primeiro olhar, logo na sexta-feira, correm as lágrimas aos emigrantes vindos de longe, aos velhos que acham que não a voltam a ver e aos revolucionários de outras partes do globo, obrigados a sacrificar a família, a liberdade e, tantas vezes, a vida.

Este é o lugar onde todos os democratas se reencontram, com passou-bens que não se querem voltar a separar e que, rapidamente, se despedem do pretexto do cumprimento para passar a ser mãos dadas. Nestas ruas, cruzas-te com o camarada com quem estiveste preso («estás cada vez mais novo, pá!»), passas pelo companheiro que no piquete da última greve geral te deu o braço para os fura-greves não passarem e que, no calor da luta de classes, afinou contigo «A Internacional» e vês a colega de há muitos, muitos anos, que ficou desempregada e que nunca mais viste, mas que (vê-se nos olhos), não traiu. Bem-vindo à Atalaia, o lugar onde está escondida a quadra perdida da Grândola, «a capital da cortesia» que «não teme de se oferecer» e que se souberes encontrar, «muita coisa hás-de trazer».

Olha, deixa-me apresentar-te este camarada…. (Epá, pronto! já sei que não és do Partido, mas camarada também significa amigo, e aqui somos todos amigos!) É maquinista da CP: tirou dez dias de férias para vir construir a festa. Fê-lo a grande custo. E apesar de não receber nem um tostão pelo seu trabalho, paga entrada como os outros todos e compra a sua própria comida como tu e eu.

O socialismo é isto? É cultura, igualdade, justiça, trabalho, direitos, liberdade e certamente muito mais, mas é também esta ternura, tão sólida e resistente que quase se pode tocar. O Che, que por cá se passeia entre os vivos estampado em cada peito, uma vez disse que não lhe interessava «um socialismo económico seco». O comunismo que nós queremos também é a irmandade aqui sentes, a vivência colectiva, o oposto luminoso da alienação: o corajoso amor que o Che (correndo o risco de parecer ridículo) dizia que move os verdadeiros revolucionários (não foi ridículo).

Estou a falar há muito tempo; não te quero maçar mais. Mas escuta, sabes quye música é esta, lá em baixo, no 1º de Maio? É a Carvalhesa a começar, canção sanguínea do nosso povo, de tambores e multidões, de coragem e amizade. É sempre assim: quando aquela melodia, sideral e tão antiga, desponta em qualquer parte da Atalaia, são rios de gente a dançar em direcção ao centro, como se um magnetismo locomotivo nos atraísse para o coração do mundo, onde se dá o braço e se dança com amigos que ainda não conhecemos.

Olha para aquele velhote, cuja cara de papel amachucado já aponta para além dos oitenta. Ali está: coluna dobrada sobre a bengala, olhos firmes e, em desafio à própria gravidade, um punho erguido, forte e combativo. Como quem te diz: «andei nesta luta a minha vida toda. Vivi a miséria, o fascismo, a clandestinidade e a prisão. Quando morrer, tens que continuar por mim». E ali, mais perto do palco, onde se ergue a nuvem de pó se mistura com as estrelas, há jovens às centenas a dançar a Carvalhesa, a garantir-nos que cá estarão para o que der e vier, para lutar pelos meios que a vida lhes pedir, para tomar o lugar dos velhos e multiplicar-lhes as forças por mil. E não te assustes com este mar de punhos cerrados contra o céu, que para os oprimidos o punho erguido é um gesto de ternura.

Então que festa é esta? Esta é a festa de quem só do seu trabalho tira o pão. Esta é a festa destes milhares de jovens que levam com orgulho ao peito a foice e o martelo. Esta é a festa de Álvaro Cunhal. Esta é a festa dos explorados para os explorados, pelos oprimidos e para os levantar. Esta é a festa dos seus heroicos e incansáveis construtores. É a nossa festa – que também é minha e tua será se assim quiseres, porque por cá para além do «nosso», sobram todos os pronomes possessivos.

Aproveita a festa, pá.

*A partir de um texto publicado em 2013.