O novo anormal

Nacional

Ao contrário do que nos têm enfiado pelos olhos dentro nos últimos meses, não há nada de normal nos tempos que estamos a viver. Isso não é de agora, é certo, mas a normalização de todas as medidas e mais algumas a pretexto da pandemia, por mais despropositadas que possam ser, são um risco que vem acentuar uma tendência securitária que vem fazendo o seu caminho, mais ou menos tranquilamente, desde os atentados de 11 de Setembro de 2001. Esta nova normalidade de distanciamento físico, que agrava o distanciamento social, de constrangimentos à livre organização e reunião, não pode ser vista apenas à luz da pandemia. Há mais aqui com o que nos preocuparmos.

De outro modo, fica difícil explicar porque é que a reuniões em espaços abertos estão restritas a cinco pessoas, mas, por exemplo, nos transportes, continuamos a viajar uns em cima dos outros, sem qualquer tipo de distanciamento. A lógica parece ser a de que temos de reduzir ao máximo a nossa vida coletiva para, se tiver que ser, morrermos porque vamos trabalhar, e apenas nesses casos isso é aceitável. Sem vida, só trabalho, porque a economia não pode parar. Porém, se não é para vivermos, de que serve que a economia não pare? Para que serve uma economia que não pára mas que não permite à esmagadora maioria da população que não usufrua do que ela cria? Isto não é viver, mas não é novo nem é normal. A colocação do trabalho como centro da nossa identificação coletiva pode ser um caminho importante a trilhar, mas não é com este rumo de trabalhar acima de tudo para viver abaixo de cão.

O caminho da securitização

Depois do 11 de Setembro, dos atentados de Madrid e Londres, a pretexto do aumento da segurança, foram vários os países que avançaram para medidas restritivas da liberdade dos cidadãos, desde a liberdade de associação aos direitos individuais. O Patriot Act, nos EUA, é o maior exemplo. Uma lei que dotou as centenas de agências de segurança e vigilância de poderes quase supremos sobre a vida dos cidadãos, de investigação, de invasão da privacidade através da suspensão de direitos. Mas não se pense que tal se passou apenas nos EUA. Espanha aproveitou o balanço da chamada luta antiterrorista para impor a Lei Mordaça, que condenou a penas de prisão músicos e outros cidadãos apenas pelo conteúdo do que escreveram no Twitter. Em França, as medidas de segurança tomadas depois dos atentados terroristas, deram ao governo neoliberal de Macron o pretexto ideal para utilizá-las contra os coletes amarelos e todos aqueles que protestavam contra as medidas governamentais.

A exceção como normalidade

É assim possível constatar que medidas que seriam, teórica e previsivelmente, temporárias, de exceção, se transformaram “no novo normal”. Desde então, entrámos numa nova fase do sistema capitalista das democracias liberais, o Capitalismo de Vigilância, de que nos fala Shoshanna Zuboff. Esta anormalidade do novo normal que vivemos nos últimos 19 anos teve uma nova hipótese de avanço com a pandemia. E não vai desperdiçá-la. Trabalhadores vigiados em casa, novas restrições políticas e associativas, porque, conforme referido acima, só é legítimo arriscar a vida se for para trabalhar.

Aplicações e mais vigilância

Vivemos hoje num estado em que somos hipervigiados. Basta ligar o nosso smartphone que a Google sabe imediatamente onde estamos, o que procuramos na internet, o que queremos, o que pensamos e como pensamos, o que leva a que o aperfeiçoamento dos algoritmos faça com que vivamos numa espécie de bolha.  Cria uma realidade alternativa que não é a verdadeira, onde o que vejo e o que encontro daquilo que procuro é aquilo que o algoritmo acha que eu quero a partir do meu histórico de pesquisas e publicações em redes. A ideia peregrina do governo de pensar obrigar os cidadãos a utilizar uma aplicação é mais um aprofundamento do capitalismo de vigilância.

O papel dos Estados

O governo, enquanto representante do Estado num determinado período de tempo, deveria ter um papel essencial no combate a este caminho de hipervigilância. No entanto, são os próprios governos que aprofundam este caminho e, como vimos, não é de agora. Quando sou obrigado a doar os meus dados a uma empresa privada para passar numa ex-SCUT, por exemplo, o Estado não está a proteger a minha privacidade. Ainda menos quando não só cede esses dados a uma empresa privada, como coloca a Autoridade Tributária a efetuar cobranças para essa mesma empresa, o que permanece para mim um mistério. O papel de um Estado tem de ser o de proteger os cidadãos de todos os riscos, antigos e novos, e o poder das gigantes das tecnologias é uma ameaça à integridade dos Estados e à liberdade dos cidadãos. A menos que, como acontece amiúde, os Estados sejam um prolongamento das gigantes tecnológicas.

O papel de classe

Não se leia aqui qualquer desvalorização da gravidade da pandemia. A situação é grave e tem de ser combatida de todas as formas através de um equilíbrio que não nos coloque como incapazes de cumprir uma orientação. Haverá, com certeza, quem não as cumpra, mas não é a maioria. A ideia, perigosa, de que só com mais repressão, com mais restrições, com aplicações móveis obrigatórias se vence a pandemia, é um caminho perigoso que corre o risco de sair-nos ainda mais caro. O combate à pandemia faz-se com mais e melhores transportes públicos, com mais professores e assistentes operacionais nas escolas, com mais médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares no SNS, com salários que permitam uma habitação digna, uma alimentação saudável. E é nesta luta que devemos concentrar os nossos esforços.