A evolução da composição orgânica do capital e a pandemia

Nacional

O capital fixo, a máquina, não cria riqueza económica se não for operada por uma pessoa. Só o tempo de trabalho roubado a um trabalhador, a que chamamos “exploração”, pode criar riqueza do ponto de vista do valor de troca, valor especialmente essencial para o funcionamento do capitalismo e do seu sistema de acumulação.

Tendo em conta que, para alterar o valor de troca, é necessária a transformação de uma matéria-prima em mercadoria por um processo de trabalho e que o valor de troca é definido pelo trabalho socialmente necessário para a transformação da matéria-prima em mercadoria, a substituição do trabalho humano por capital (substituição de ser humano por máquina) não cria riqueza.

A introdução da automação é, por isso mesmo, um processo política e economicamente complexo até para os centros de decisão do grande capital mundial. A substituição do trabalho humano por capital liquidaria a capacidade de exploração, na medida em que a máquina não é passível de exploração e, no limite, apenas existiria exploração daqueles que conceberam a máquina e daqueles que a produziram. No extremo limite, como que já num cenário de ficção científica, se a máquina concebe a máquina e a máquina produz a máquina, então a exploração passa a ser absolutamente impossível.
A elite dominante, a grande burguesia, que actualmente detém os meios de produção percebe tão bem quanto Marx e Engels que a substituição do trabalho pelo capital liquida a contradição que é a base do capitalismo: a contradição entre trabalho e capital, na medida em que elimina a relação de exploração entre os detentores de capital e os detentores de força de trabalho. Isto gera problemas fundamentais e que colocam o capitalismo numa situação mais desequilibrada do que nunca. O desenvolvimento dos meios de produção e o desenvolvimento das forças produtivas está a atingir um clímax que coloca em causa a possibilidade de continuidade do próprio sistema. O capitalismo enquanto sistema foi construído na base da exploração do Homem pelo Homem e qualquer outra forma de organização social que não assente nessa relação não se poderá chamar de capitalismo.

A automação no quadro do sistema capitalista coloca aos decisores da classe dominante problemas que não são de fácil resolução. Por um lado, se apenas sectores da produção se automatizarem, isso provoca um desequilíbrio entre os vários sectores. Isso implicaria uma situação em que o capital exploraria duplamente os salários dos trabalhadores. Por exemplo, um supermercado automatizado não explora trabalhadores do supermercado, mas extrai riqueza a trabalhadores de outros sectores. Esse caso, representaria, não a criação de uma riqueza sobre a qual existe formação de mais-valia pela exploração do trabalho, mas a apropriação de uma parte do resultado da riqueza criada num outro sector de produção. Uma espécie de novo capital rentista, na medida em que ser dono das máquinas gera rendas que, não sendo produtivas em si-mesmas, são necessárias para garantir a reprodutividade do trabalho (ou seja, são necessárias para que o trabalhador possa continuar a aparecer no local de trabalho, de acordo com o conceito marxista de “salário”). A máquina não altera o valor de troca de uma mercadoria além do valor de troca que lhe é inerente (ou seja, do trabalho socialmente necessário para a produzir e para a sua manutenção). Ou seja, se uma máquina custou um milhão de euros (por força do tempo de trabalho socialmente necessário para a produzir) e tem um tempo de vida que lhe permite produzir um milhão de peças, isso significa que o valor de troca das peças será composto pelo preço da matéria-prima somado do preço de uma utilização unitária da máquina – um euro -, o que significa que o proprietário da máquina não ganhou nada com o negócio da transformação da matéria-prima em mercadoria.

Se, pelo contrário, o proprietário da máquina puder incorporar no valor de troca o tempo socialmente necessário para a transformação da matéria-prima em mercadoria por recurso à exploração do trabalho, isso significa que o preço da mercadoria conterá uma componente de capital variável passível de exploração. A mesma máquina de um milhão de euros, por exemplo, operada por um trabalhador, transformando uma matéria-prima em mercadoria de consumo cria uma situação radicalmente diferente: neste caso, o valor de troca da mercadoria final conterá o valor da mercadoria adicionado do valor de uso unitário da máquina e do valor do trabalho explorado. Explorado porque o trabalhador é pago para realizar 8 horas de trabalho, mas realiza 9, por exemplo. Ou porque é pago para fazer uma tarefa e faz três, ou porque é pago muito abaixo do valor correspondente ao preço final do produto, tendo em conta o desfasamento entre o preço especulativo e o valor de troca do produto.


O delicado equilíbrio em que o capitalismo se desenvolve está à beira de ser perturbado pelo próprio capitalismo, como os marxistas sempre previram. O sistema encerra sempre em si as sementes da sua destruição até ao estádio final em que não existam contradições, partindo de Hegel e de Marx. O capitalismo criou a classe mais numerosa e mais poderosa (materialmente e potencialmente política e economicamente), o proletariado. Essa classe está nas melhores condições de sempre para impedir que o capitalismo destrua a Humanidade para tentar sobreviver num estertor que conduzirá o globo à barbárie.
A automação quase total da economia só pode significar uma de duas coisas: a destruição total da Humanidade, a destruição total do capitalismo e a eliminação das classes sociais, pela liquidação da propriedade privada dos meios de produção. Tendo em conta que a automação, ainda que não total, mas certamente crescente, é inevitável, resta-nos lutar para que a destruição da Humanidade não seja real e para que a destruição do capitalismo implique o menor número de perdas humanas na luta pela posse das máquinas. Pois que certamente os seus actuais proprietários formais não abdicarão delas e isso significa que, nessa luta, se pode perder uma parte mais ou menos significativa da Humanidade. Certo, porém, é que a parte que sobreviva, sobreviverá num sistema que superou o capitalismo e que será socialista ou comunista.

Estamos a chegar àquele limiar da História em que os limites históricos e materiais do capitalismo se precipitam por acção da contradição entre trabalho e capital, ou seja, pelo funcionamento do próprio sistema capitalista.

O grande capital está atento a esse limiar, percebe-o com clareza. A utilização da situação de actual pandemia para a concretização de determinados actos políticos é um claro sinal de experimentalismo. Além de se permitir a uma aceleração galopante dos processos de acumulação e de concentração monopolista nos momentos de lockdown e de arrefecimento da sobreprodução, alargando o exército industrial de reserva, consumindo recursos públicos e libertando stock, numa espécie de reset (reset, apenas para os grandes grupos económicos e monopólios que sobrevivem a confinamentos e lockdowns, porque para todo o pequeno capital e restantes formas de propriedade, é um shutdown) de um dos problemas fundamentais da baixa da taxa de lucro e da sobreprodução; o grande capital coloca Estados a servir o seu experimentalismo para ver até onde pode ir na limitação das capacidades do proletariado para a luta pela propriedade dos meios de produção e para a luta pelos seus direitos em tempos complexos. O capitalismo pode não ter inventado o vírus, mas enquanto nos põe de máscara, o vírus é o seu balão de oxigénio.

Não estamos pois em momento de impedir a evolução tecnológica, rementendo-nos ao papel de luditas, nem estamos em condições de negar a existência de fenómenos biológicos naturais como vírus, mais ou menos pandémicos, mas estamos em condições de denunciar que as medidas que estão a ser tomadas, com os recursos a um estado autoritário e a um estado que salvaguarda mais um hospital privado do que investe num público, que salva os lucros de um monopólio enquanto permite que milhares fiquem sem salários e sem empregos, que permite a propriedade privada de edifícios devolutos num momento em que pessoas não têm como pagar casas, entre tantas outras, mais não são do que a demonstração material de que não há espaço para a Humanidade no capitalismo. Porque o Estado, os estados capitalistas, não estão a salvar pessoas, estão a salvar o capital.

2 Comments

  • Mário Pádua

    3 Novembro, 2020 às

    Muito interessante

  • Carlos Almeida

    3 Novembro, 2020 às

    Uma sucessão de robots a controlar robots! Assustador.

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