O oásis

Nacional

Pouco antes da chegada de Ventura ao Parlamento, não faltaram artigos, uns de opinião e outros de fundo, a falar de Portugal como um oásis no que respeita aos populismos representados nos parlamentos dos diversos países. Talvez tivesse sido interessante observar os períodos eleitorais de cada país e o como isso afetava a amostra. Obviamente, nem Portugal é um oásis, nem neofascistas são populistas, por um motivo simples: se fala como um fascista, se age como um fascista, se faz propostas fascistas, então, é um fascista. Começam aqui os equívocos.

Da língua

Populismo e fascismo são coisas diferentes, mas também no uso da língua a ideologia dominante faz questão de deixar a sua marca. Nos media, o Aurora Dourada, da Grécia, era nacionalista, o Fidesz da Hungria é populista, Nigel Farage era o populista líder do Brexit, Bolsonaro o militar populista, Trump era uma anedota que jamais seria candidato, depois jamais ganharia primárias, depois jamais seria presidente dos EUA. Um trabalhador passou a colaborador, patrão a empresário, partilhar casa porque os preços do arrendamento são incomportáveis é co-living, precariedade é inevitável porque, supostamente, as novas gerações não querem compromissos longos e complexos, como são os contratos de trabalho, preferindo o trabalho uberizado, à jorna.

Da língua e do trabalho

Este tipo de branqueamento linguístico é, também uma das causas para o avanço da extrema-direita, porque também tem uma dimensão ideológica. O trabalho é, nas sociedades pós feudais, a forma que o sujeito tem de se identificar socialmente, através da sua classe e da sua identificação com os seus pares. No entanto, desde os anos 70 do século XX e com a preciosa ajuda dos partidos sociais-democratas de fachada socialista, o neoliberalismo avançou de forma descontrolada sem oposição, e mesmo com apoio, de Organizações Internacionais como o FMI e a OMC. Com ele, a identificação social do trabalhador caiu em desuso, porque o trabalhador passou a ser indiferenciado. Um trabalhador pode fazer tudo no seu local de trabalho, deixou de ser especializado e, através da complexificação das relações laborais, voltou a ser um trabalhador à jorna da primeira fase do capitalismo: vagueia na internet à espera de uma notificação que lhe diga que foi o escolhido da praça para levar a cabo uma atividade. A complexificação das relações laborais não foi acompanhada pela legislação que proteja os trabalhadores. Os dados da OIT são claros sobre isso, com uma diminuição abrupta de Convenções e Recomendações desde os anos 80.

A língua e a extrema-direita

De forma gradual, em Portugal, o discurso dos derrotados de Abril e vencedores de Novembro foi-se institucionalizando através dos media, particularmente desde a viragem do milénio. Portugal nunca debateu o seu papel colonizador ou, quando o faz, fá-lo no sentido do colonizador bom. Wyriamo e Mucumbura não são ensinados em História, porque são tremendamente incómodos e podiam, em último recurso, colocar-nos ao nível do rei belga Leopoldo. Não houve uma conciliação com o nosso passado colonial e isso faz com que sejamos incapazes de  assumir que há racismo em Portugal, quer social quer institucional, e basta olharmos à nossa volta para ver isso.

A extrema-direita e Portugal

Este é o campo perfeito para a extrema-direita e para os seus três campos de ação distintos, que sempre existiram em Portugal. Tínhamos até agora os operacionais de grupos neonazis como o MAN – Movimento de Ação Nacional dos anos 80 e 90 – e a NOS de Mário Machado. Temos o PNR da aristocracia fascista e o CDS dos acomodados do fascismo, que tanto viveram bem durante a ditadura como depois da Revolução. Entretanto, um comentador futebolístico decide criar um partido, acompanhado por outros dois micropartidos; a Democracia21 e o Partido Pró-Vida. O facto de ser comentador da CMTV dá-lhe o palco e o mediatismo necessário para que se lance nas Europeias com o Basta. Nas legislativas, avança com o Chega e é eleito com um programa que vai alterando conforme convém.

Ventura sabe que os seus eleitores não querem saber de programas eleitorais, querem ouvi-lo dizer as verdades mesmo que sejam mentira, querem que seja ele a verbalizar o que sempre pensaram, mas, por decoro, não tinham, até agora, coragem de o dizer abertamente, manifestando o seu racismo puro e a xenofobia mais atroz. Este avanço da extrema-direita era inevitável em Portugal, como é em todos os países da Europa. Ventura é o idiota útil de interesses maiores, do núcleo da rede bombista do MDLP – que já deve anos à cova mas ainda cá anda – que o suporta. E assim, Ventura conseguiu desestruturar o CDS, acabar com o PNR e fazer a NOS perder os seus operacionais para o seu partido, criando, no fundo, uma frente de extrema-direita que continuará a crescer nas próximas eleições.

A extrema-direita: filha da democracia liberal

A democracia liberal, que defende e impulsiona o liberalismo, nunca conviveu mal com o fascismo e a extrema-direita. Churchill, por exemplo, viu com bons olhos o golpe franquista em Espanha, porque travava a ameaça comunista. As democracias liberais, mesmo dentro delas, conviveram bem o racismo e a xenofobia, e os EUA são exemplo disso mesmo, com a segregação racial que durou décadas. Portugal integrou a NATO sob o comando de Salazar, com a conivência das grandes democracias ocidentais. E de cada vez que instituições das democracias liberais tentam reescrever a História, como sucedeu com a resolução do Parlamento Europeu que compara nazismo e comunismo, dão novos argumentos à vaga da extrema-direita, porque, historicamente, estes movimentos sempre proliferaram com base na mentira e com desdém pela ciência. Mas, evidentemente, os sociais-democratas defensores da democracia liberal convivem  bem com este tipo de mentiras, desde que pare a ameaça vermelha.

Tão bem que, em Portugal, ainda havemos de chorar Adriano Moreira, ministro de Salazar, como um pai da nossa democracia, Jaime Nogueira Pinto continuará a ser tratado como um fascista fofinho, Veiga Simão, ministro de Salazar e ministro da Defesa de Guterres, que sucedeu no cargo, durante a ditadura, a outro salazarista que a democracia reabilitou, no caso, José Hermano Saraiva. Como estes casos há muitos outros, a nível nacional mas, sobretudo, local. Gente que se adaptou bem à democracia mas continuou a achar que antigamente é que era bom.

O caldo

Entre uma imprensa amorfa, que deveria informar em lugar de enformar, que se deixou engolir pelas redes fruto da sua preguiça e, simultaneamente, do neoliberalismo que as elites opinantes defendem – não assumindo, a esmagadora maioria das redações, que são trabalhadores à jorna e nunca chegarão à elite que se passeia nos gabinetes de ministros, temos todos os ingredientes para que a História se repita. Com a diferença que, desta vez, não há um equilíbrio de poderes no plano internacional, não há um choque de forças antagónicas que garanta que os pratos da balança se equilibram. Há os que são abertamente fascistas e os que, não o sendo, escancaram-lhes as portas. E nós, comunistas, temos a tarefa que sempre tivemos ao longo da História: combater o fascismo por todas as formas e com todos os meios, da mesma forma que combatemos a democracia liberal e os caminhos sociais-democratas que lhes abrem as portas.