O Rei vai nu!

Internacional

«raiva que muito mais doce do que mel a escorrer
aumenta como se fosse fumo nos peitos dos homens»

Homero

Comecei por Homero, mas volto-me rapidamente para Hans Christian Andersen, no seu conto «O rei vai nu». Regresso à cegueira desse rei, tão faminto do extraordinário, tão consumido de falsos louvores, que é facilmente convencido de estar a usar o mais belo traje do mundo. Quando sai à rua para se mostrar aos seus súbditos, a voz inocente de uma criança grita: «O rei vai nu!» — e, naturalmente, a verdade é tão revolucionária que imediatamente brota do público a risota e o rei, castigado pela sua vaidade, se retira destroçado.

Porque comecei pela Literatura? 

Porque nos vemos agora num momento em que a ficção ameaça dominar a verdade, abeirando-nos perigosamente da distopia, onde a centelha revolucionária da verdade esmorece tal é o sopro da desinformação. Se «O rei vai nu!» tivesse sido escrito no ano de 2023, uma mão se teria erguido contra a face da criança que evidenciou a óbvia nudez do rei e uma boca lhe teria cuspido: «Negacionista!» 

Não sei bem explicar como aqui chegamos, não ando por cá há tanto tempo quanto isso, também não sei se me compete fazê-lo, mas a raiva doce como mel aumenta como se fosse fumo no peito. Vejo ecos deste dominante condicionamento pavloviano do pensamento nos últimos anos. Dizia uma vez Rui Pereira numa conversa sobre a guerra na Ucrânia, que há muito a comunicação social vinha a pavimentar o caminho do pensamento único. Compreende-se facilmente, os canais de comunicação dominavam a informação e o discurso que chegava às pessoas confinadas nas suas casas e isto representou, mais do que podemos imaginar, uma das maiores experiências sociais a que fomos sujeitos. A verdade era só uma e quem ousasse sequer duvidar ou apontar contradições, era rejeitado pelo grupo como um «negacionista!». Mecanismo subtil e poderosíssimo esse: colocar o povo a controlar o pensamento do próprio povo.

O mesmo modo de operar vimos quando rebentou a Guerra na Ucrânia, por esta altura já as massas dispensavam provas de verdade ou contextualizações. Agora, quem ousasse procurar contextualizar os acontecimentos, estaria a defender o invasor e era um perigoso «Putinista!». Eis que nos parece surgir um efeito novo:

A Guerra enquanto entretenimento. A Guerra para consumo. A necessidade de ficção vem, então, esmagar qualquer necessidade de verdade que restasse. Nunca me esqueço de um dia em que estava numa sala de espera de um hospital e assistia às notícias como toda a gente e o pivot abre o telejornal com um estrondoso: «Sejam MUITO BEM VINDOS ao décimo sexto dia da Guerra na Ucrânia». Eu não quis acreditar, mas assim é. A Guerra na Ucrânia, mais do que um acontecimento político ou histórico, foi um acontecimento televisivo.

Apesar disso, em 2022 não estávamos ainda num estado coletivo de histeria tão avançado como em 2023. No caso desta Guerra, apesar da ausência de contextualização, ainda o pensamento único funcionava pela ordem tradicional, ainda funcionava de acordo com uma lógica previsível. Não é sequer mais isso que vemos. O Ocidente parece ter sido sintonizado numa nova frequência de rádio e as bandeirinhas azuis e amarelas são substituídas pela bandeirinha de Israel. Então, o Ocidente acorda para um conflito que apesar de durar há três gerações, aparece com data oficial de 7 de Outubro. Agora, nenhuma criança se atreve a dizer que «O rei vai nu!». O silêncio ocidental é grotesco e a sequência lógica do pensamento único surge invertida. Existe uma dupla moral a permear a sua visão na qual notamos a seguinte tendência:

  1. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, a legitimidade de defesa e resistência desse país não foi colocada em causa. A comunidade internacional comoveu-se em lágrimas azuis e amarelas e todos financiaram o armamento dos invadidos.
  2. Quando Israel ocupou ilegalmente a Palestina, a legitimidade de resistência do povo palestiniano é fortemente colocada em causa e imediatamente apelidada de terrorismo. A comunidade internacional comove-se desta vez não com o povo invadido, mas com o ocupante e todos financiamos o armamento dos ocupantes.

Note-se que o Hamas é um grupo militar que não corresponde ao Estado da Palestina, apesar de ser responsável pelo o maior ataque que Israel conheceu nos últimos tempos, Israel responde não atacando diretamente o Hamas, mas atacando civis. Israel responde ameaçando civis. Israel responde bombardeando hospitais, escolas, infraestruturas essenciais, bairros inteiros onde pelo menos metade da população tem menos de 15 anos de idade.

Se com o Covid-19 aprendemos que a verdade não nos importa e com a Guerra na Ucrânia aprendemos que a contextualização dos acontecimentos não nos importa, com o conflito entre Israel e Palestina aprendemos que tampouco nos importa a coerência e a lógica. Caminhamos passivos para a inércia.

Ainda não dissemos tudo.

Parece-me que além do sacrifício da coerência e da lógica, parece ocorrer também um esvaziamento de valores como o bem e o mal, o certo e o errado, o que é deveras surpreendente na nossa tradição judaico-cristã. Há um ano atrás, a presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen condenava a Rússia por dirigir ataques contra civis. Nas suas palavras: «assistimos a um ataque da Rússia contra infraestruturas de civis com o claro objetivo de privar homens, mulheres e crianças de água, eletricidade e calor com a aproximação do inverno. Estes são actos de puro terror e devemos nomeá-los como tal». Poderia ela imaginar que os mesmos actos tão condenáveis seriam no espaço de um ano cometidos pelo Estado de Israel no território de Gaza? Mas onde está agora a condenação? Será que os valores do bem e do mal, o certo e o errado, flutuam consoante a simpatia do Ocidente pelos povos?

A maioria da população que habita o território da faixa de Gaza são crianças e adolescentes. Cerca de 1/3 das mortes correspondem a crianças num universo de mais de 1.500 mortos. Tenhamos esta informação em mente para analisar as seguintes: ontem, dia 12 de outubro, Israel declara que as Nações Unidas devem notificar e evacuar nas 24h seguintes 1.1 milhões de civis do Norte de Gaza. Tarefa que é evidentemente impossível, não só pelo tempo limitado em mover tal número de civis, mas sobretudo porque não existe saída possível de Gaza. Gaza é uma prisão a céu aberto, todas as fronteiras estão fechadas, todas as saídas foram destruídas. Tudo o que de lá entra ou sai é absolutamente controlado por Israel. Isto não pode ser lido como outra coisa senão por aquilo que é: uma declaração de intenção de massacre. Um massacre de maioritariamente crianças e adolescentes, com a muito conveniente justificação de retaliação ao ataque do Hamas. É fácil intuir a estratégia. Eliminem-se as crianças, para que não tenham de eliminar palestinianos adultos daqui a dez anos. E talvez daqui a vinte anos possamos assistir ao José Rodrigues dos Santos recordar esta chacina como uma «solução humanitária».

O Ocidente precisa de bater as pálpebras. O Rei vai nu! O Rei vai nu! O Estado de Israel é um estado genocida!

[Fotografia de Catarina Alves]

2 Comments

  • JOSE ALEXANDRE ALBES DA COSTA

    24 Outubro, 2023 às

    Falta a coragem de chamar os bois pelos nomes! A minha forma BRUTA de dizer o rei vai nú. Estamos a ficar sem capacidade crítica e de ler nas entrelinhas… É MUITO TRISTE, para mim REVOLTANTE…

  • Luis Ortigueira

    16 Outubro, 2023 às

    Nem mais!
    Excelente.

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