Jornalismo, o elogio fúnebre

Internacional

Diz-se que, numa guerra, a primeira vítima é a verdade. E o jornalismo, que já corria perigo de vida, viu a guerra matá-lo e enterrá-lo, definitivamente, com a cobertura recente dos acontecimentos na Palestina. Ao contrário do que se esperava e discutia amiúde, não foram as redes sociais a matar o jornalismo, mas os jornalistas nas redes sociais a matar a sua credibilidade. O jornalismo parece ser secundário.

É relativamente fácil criar um monstro à luz dos supostos valores morais de uma sociedade. Carlos Santos Pereira, jornalista, escreveu um livro sobre as relações dos media com os militares e, por conseguinte, com os interesses dos governos dos Estados. Santos Pereira conhece e denunciou as pressões que sofreu quando tentou contar o que viu nos diversos terrenos que pisou. Numa entrevista ao Jornal de Leiria, em 2016, diz o jornalista, sobre pressões e censura:

[…] Agora, porem-me a andar ou tentarem evitar que falasse, sim. O caso da Ucrânia é um bom exemplo. Em toda a parte, estava proibido de contar o que vi. Só publiquei a história na Revista de Ciências Militares. Ao contrário do que seria de esperar, a multiplicação dos canais de comunicação e de informação e o acirrar da concorrência tem o efeito de afunilamento. Nunca a informação foi tão uniforme, tão igual.

A resposta à concorrência não é tentar fazer diferente do vizinho. É garantir que eu não deixei de dar aquilo que ele também deu. A versão das agências de comunicação e relações públicas famosíssimas pelo papel que tiveram nestes conflitos, que cozinharam o enquadramento histórico e político para os jornalistas fazerem a contextualização das notícias. E depois tudo o que os órgãos de comunicação, políticos e diplomatas diziam à volta. Criou-se esse tal ambiente de consenso. Era um processo em que participava muita gente, mas tinha pivots. Um deles foi a CNN. A CNN é um excelente exemplo do que é mau jornalismo. Pelas ligações que tinha à Administração norte-americana, acabava por servir de padrão de referência, que era adoptado mais ou menos em toda a parte. Durante a primeira Guerra do Golfo, em 1991, a cobertura foi feita em grande parte com o José Rodrigues dos Santos perante a câmara e com um ecrã com a CNN ao lado, que ia traduzindo.”

O facto mediático

Criar um facto mediático para a mobilização em torno de uma causa tem sempre o mesmo modelo. Cria-se um mundo a preto e branco para um problema complexo e mistura-se emoção. Não interessam os contextos, nem a História, muito menos as vítimas de ambos os lados. Interessa a punição. Foi assim nos Balcãs, por exemplo, quando se apagou das notícias a limpeza étnica dos sérvios na Krajina. Os media nos EUA, particularmente a CNN, criaram um monstro, com um nome que ficou no ouvido: “Balkan’s Butcher”, referindo-se a Milosevic. Não foi por acaso que os responsáveis israelitas se referiram aos ataques de sábado como o 11 de Setembro israelita. A minha geração, que está agora na vida adulta, entre os 30 e os 50 anos, teve nesse dia de 2001, quando os aviões embateram nas torres, a noção de que o mundo havia mudado para sempre. Mas não basta ficar no ouvido, é necessário o impacto visual da cena. Daí a manchete e foto de capa do Metro News, na Escócia, que refere 40 bebés decapitados pelo Hamas, enquanto um soldado segura um cão no colo. A mensagem é clara: o inimigo não respeita nem sequer bebés, enquanto os israelitas salvam cães do horror, são a humanidade na guerra. Está criada a noção dos bons e dos maus, dos que avançam contra o terrorismo e dos que o combatem valentemente, contra a barbárie.

Se não é verdade, podia ser

A história dos bebés decapitados foi lançada por um colono israelita no canal de televisão i24News, criado para competir com a Al-Jazeera. Este é um canal israelita e, como o mundo é pequeno, é propriedade de Patrick Drahi, também dono da nossa conhecida Altice. O canal assumiu, em 2019, uma linha pró-Netanyahu, de acordo com uma investigação do Haaretz, jornal israelita. A questão de saber se houve 40 bebés degolados não diminui em nada a morte trágica e injustificável de crianças, tenham elas a nacionalidade que tiverem. Basta que tenha sido uma para ser trágico. Mas foi difundida, acriticamente, sem qualquer verificação, por vários jornalistas. Qualquer jornalista minimamente sério, não reproduz o que uma das partes interessada lhe dá sem verificação, seja essa parte o Hamas, o governo de Israel, os EUA, a Rússia ou a Ucrânia. Mafalda Anjos, diretora da Visão e comentadora na CNN, foi uma das primeiras a difundir a mentira. Horas depois, começa a emendar a mão mas faz pior, avançando que, não sendo verdade, é como se fosse. Com o passar do tempo, alguns dos jornalistas que avançaram a informação, começam a desmenti-la. É Sara Sidner, da CNN, em quem Mafalda Anjos se baseou para difundir a mentira, quem admite que estava errada: “Ontem, o gabinete do primeiro ministro confirmou a decapitação de bebés e crianças pelo Hamas enquanto estávamos em direto. Agora, o governo israelita diz hoje que NÃO PODE confirmar que bebés foram decapitados. Tenho de ter mais cuidado com as minhas palavras e peço desculpa”. Obviamente que o Nuno Luz da guerra, também da Visão e comentador da SIC, Luís Ribeiro, mantém que aconteceu. Ao fim da tarde, a conta oficial de Israel no ex-Twitter, numa tentativa nojenta de cavalgar a mentira, publicou três fotos de bebés mortos. Está, portanto, legitimada a mentira, mesmo quando já se sabia que havia crianças entre as vítimas logo no dia dos ataques. Não foram 40 bebés degolados, mas é como se fossem. E ai de quem ouse pedir o mínimo de seriedade aos jornalistas que difundiram a mentira. Está, claro, a defender que, se não foram 40 bebés degolados, não há mal. É a luta das trincheiras, acirrada pelo anticomunismo primário, que está mais vivo do que nunca. Já sabemos, não há contexto e, como na Ucrânia, em que a guerra começou com a invasão russa, também aqui Israel só interveio militarmente depois do ataque da resistência palestiniana. E quem disser o contrário, é um perigoso terrorista/apoiante de Putin – riscar o que não interessa. A tentativa de tornar a questão de uma notícia falsa, divulgada por media de todo o mundo, numa espécie de competição para ver quem é mais selvagem pela forma como mata bebés, é o grau zero de tudo. Li ontem, aliás, alguém dizer que não se pode comparar a morte de bebés assassinados pelo Hamas, com a morte de bebés num bombardeamento. É neste grau em que estamos. As mortes humanitárias. A tese de José Rodrigues dos Santos, jornalista da RTP, de que gasear judeus, comunistas, homossexuais, resistentes antifascistas, foi uma solução humanitária. Fez escola.

Cuidado com as palavras

Sendo jornalista da CNN, Sidner sabe que tem mesmo de ter cuidado com as palavras. E sabe as que pode e não pode usar. A mentira está lançada e, como sabem os jornalistas que trabalham em verificação de factos, a verdade nunca alcançará uma audiência tão grande como a mentira, até porque essa mentira vai ao encontro da imagem que o nosso lado, o lado bom, obviamente, incapaz de tais atos, precisa ter do outro lado para justificar os crimes do nosso lado. Ou antes, do nosso lado não há crimes, há justiça. A narrativa dominante está criada e, como disse Mafalda Anjos, se não aconteceu, podia ter acontecido e não muda nada. É nesta fase em que estamos agora. Os maus não fizeram isso, mas podiam ter feito, logo, é como se tivessem feito. É assim que se constrói uma opinião domesticada. Depois, basta mostrar imagens do ataque da resistência palestiniana com uma música de fundo, imagens de drones e testemunhos de familiares das vítimas e temos o círculo fechado. Pouco importa que um jovem adulto, que tenha nascido em Gaza no ano 2000 não tenha memória de viver fora do que é um campo de concentração. Porque Gaza é um campo de concentração, no entanto, ai de quem ouse chamar-lhe isso. O nosso lado era incapaz de fazer uma coisa dessas. Pelo contrário, nos conflitos dos Balcãs, nos anos 90, não faltam referências a campos de concentração sérvios. Do outro lado, claro está. Nós não faríamos uma coisa dessas. Muito menos dizer que está a acontecer um genocídio. É impossível que o seja. Nós, que tantas vezes nos perguntámos como foi possível o mundo e as sociedades em geral assistirem ao que foi feito pelos nazis sem perceber o que se passava, não podemos agora conceber que esteja a acontecer o mesmo. Até porque não é na Europa, as vítimas não são brancas, os agressores vivem como nós, e nos dizem todos os dias que não.

O Iraque aqui tão perto

Collin Powell ficou célebre por ter mostrado, numa reunião do Conselho de Segurança da ONU, um pequeno frasco que continha a prova de que o Iraque possuía armas químicas. Era mentira, mas a generalidade da imprensa não contestou as informações do responsável estado-unidense. Afinal, era uma informação oficial. E todos sabemos o que se seguiu e o estado em que está hoje o Iraque. Por causa de uma mentira que serviu para legitimar o massacre de civis iraquianos. Mas os nossos jornalistas e comentadores, alguns deles que vêm desse tempo e apoiaram, inclusivamente, quer a invasão do Iraque quer a do Afeganistão, estão confortáveis com isso. Sabem que alguém que tenha visão diferente sobre um acontecimento não terá o mesmo espaço, o mesmo tempo de antena, para defender os seus pontos de vista. Mesmo que possam ser errados. É que, para os comuns mortais que não sejam jornalistas ou do círculo de comentadores, estar errado é sempre uma possibilidade.

Tantos meios, o mesmo fim

Dizia Carlos Santos Pereira que, “Ao contrário do que seria de esperar, a multiplicação dos canais de comunicação e de informação e o acirrar da concorrência tem o efeito de afunilamento. Nunca a informação foi tão uniforme, tão igual. E isso não é por acaso. Não é um acaso que possamos ouvir ou ler o Daniel Oliveira no Expresso e na SIC, o Pedro Marques Lopes no DN, na SIC, na TSF e na Visão, a Helena Matos na RTP e no Observador, e por aí fora. Há uma linha clara sobre até onde jornalistas e comentadores podem ir. À esquerda, o máximo é o centro; à direita, o céu é o limite. A imposição do pensamento hegemónico foi estudada por Gramsci e pode ser sintetizada da seguinte forma: “A hegemonia cultural é um termo que descreve a supremacia e influência exercida por um grupo ou classe social na definição das normas, valores, crenças e símbolos que moldam a cultura e a identidade de uma sociedade”. Por outro lado, Marx dizia que “as ideias dominantes de um tempo, são as ideias da classe dominante”. Marx e Gramsci complementam-se na sua análise e olham para o quadro do que temos hoje. Uma parte muito significativa da classe jornalística perdida em vaidades, em superioridade moral, sem conhecimento do que a rodeia, deslumbrada com gabinetes de ministros e uns minutos nas TV, a fazer jornalismo a partir do antigo Twitter, a pintar a preto e branco o quadro que Marx e Gramsci interpretaram.

Legitimidade política

Esta postura mediática tem por fim corroborar a legitimidade política para apoiar um regime colonialista, apartheid, que mantém um campo e concentração há 17 anos, que mata civis indiscriminadamente e, a cereja no topo do bolo, a proibição do protesto em solidariedade com as vítimas palestinianas. França proibiu as manifestações de apoio à Palestina e Inglaterra proibiu a exibição de bandeiras da Palestina. O pensamento único começa na manipulação das massas para garantir a legitimidade ao poder político, a quem o jornalismo serve.

Réstia de humanidade

O que está acima procura explicar porque é que a morte de crianças israelitas seja mais chocante do que de crianças palestinianas. As palestinianas morrem todos os dias. Os media estão muito pouco interessados nelas. E foram assassinadas quatro por mês, até sábado passado, desde o início de 2023. Desde que começaram os bombardeamentos israelitas, o número subiu para mais de 140. Há sete jornalistas palestinianos mortos em Gaza. Doze membros da ONU que estavam no terreno, mais quatro da Cruz Vermelha. Não há gás, eletricidade ou água, o que levou já alguns israelitas a fazerem vídeos a gozar com a situação. Os hospitais têm as unidades de cuidados intensivos cheias e a eletricidade, que vem dos geradores, deverá acabar em breve, porque não há combustível para alimentá-los. Precisamos de parar todos e pensar no que nos estamos a tornar-nos enquanto sociedade. E no papel do que resta do jornalismo dentro dela. E já não resta muito, enquanto caminha alegremente para a irrelevância, para ser lido, visto e ouvido apenas pelos pares e pelos próprios, que, em alguns casos, adoram ouvir-se a eles próprios.

As generalizações têm um problema: são sempre exageradas. Quando aqui se fala de jornalismo e jornalistas, não são todos os jornalistas nem todo no jornalismo. Há pequenas aldeias gaulesas em quase todos os media. Mas dias depois de saber que perdemos o Fernando Alves, na TSF, e o Miguel Carvalho, na Visão, o panorama tende a escurecer ainda mais.

1 Comment

  • Jorge Pinto

    15 Outubro, 2023 às

    Muito bom. Obrigado.

Comments are closed.