Gaza, o campo da morte certa

Internacional

O levantamento da resistência palestiniana, nos últimos dias, contra o estado apartheid de Israel, fez voltar os holofotes das secções de Internacional dos media para o habitual branqueamento dos crimes de Israel e a diabolização da resistência palestiniana. Em primeiro lugar, pelo apagamento sistemático dos crimes de Israel contra civis palestinianos, que ocorrem todos os dias, sem exceção, há décadas. Em segundo, atribuindo ao Hamas todas as ações dos últimos dias, que envolvem também a morte de civis, procurando reduzir àquele movimento a resistência palestina.

Israel é um Estado falhado, que vive num regime de apartheid, com segregação dos palestinianos, num regime altamente securitário, baseado em apoio financeiro e militar dos EUA e de outras potências europeias, o que lhe permitiu desenvolver, ao longo dos anos, a sua indústria militar. Eu sei que, nos dias de hoje, constatar uma coisa destas equivale a ter, imediatamente, o epíteto de apoiante de terroristas, ao mesmo tempo que, noutras latitudes, referi-lo é o equivalente a dizer que se apoia o ocupante. Mesmo sendo verdade.

As costas largas do Hamas

Há uns anos, numa entrevista, um jornalista perguntava a um responsável do Hamas como é que funcionava o recrutamento da organização. Respondeu que não precisava de recrutar, que quem vive como vivem os palestinianos, não precisa de incentivos para pegar em armas. E tem razão. É sabido, mas pouco difundido, que o Hamas é uma criação israelita para tirar força e influência à Fatah e à OLP, bem como aos marxistas da FPLP e da FDLP. Nenhuma destas organizações tem caráter islâmico e muito menos fundamentalista, são laicas e de esquerda. Em 2007, Amos Yadlin, diretor dos serviços de inteligência israelitas dizia: “seria bom para Israel que o Hamas controlasse Gaza, para que o exército pudesse lidar com Gaza como um estado terrorista, desde que não controlem nenhum porto”. Estas e outras declarações podem ser encontradas nos ficheiros revelados pela Wikileaks. Recorde-se que Julian Assange, fundador da organização, está preso e poderá ser condenado a prisão perpétua. Voltando à Palestina, é irreal pensar que os ataques dos últimos dias foram apenas realizados apenas pelo Hamas. Houve e há no terreno outras organizações a participar na resistência, mas é mais útil aos Órgãos de Comunicação Social difundir que apenas o Hamas o fez.

As costas estreitas do terrorismo

A desculpa do terrorismo tem servido para justificar as maiores atrocidades ao longo dos tempos. Por exemplo, Nelson Mandela, histórico líder do ANC, com quem os líderes mundiais enchem a boca para celebrar o seu aniversário ou assinalar a sua morte, esteve na lista de terroristas dos EUA até 2008. O ANC, que também usou a luta armada para combater o apartheid na África do Sul, foi visto como uma organização terrorista pelas maiores potências mundiais. Do mesmo modo, os movimentos de resistência ao colonialismo português, francês, inglês, os movimentos de libertação da América Latina, foram sempre considerados grupos terroristas. Não há uma definição consensual de terrorismo, mas a corrente dominante da relações internacionais entende que o terrorismo não pode ser praticado por um Estado, o que coloca de fora, por exemplo, Israel. Ou seja, Israel pode fazer, todos os dias, exatamente aquilo que o Hamas fez, mas não pode ser terrorismo, porque é um Estado. Daí que surjam cada vez mais vozes a defender que existe terrorismo de Estado dando como exemplo, pasme-se, Israel.

A solidariedade pigmentar

Para a direita, obviamente que Israel está certo e deve continuar a matar e a desalojar, todos os dias, famílias inteiras de palestinianos. Afinal, a pele deles é mais escura. Curiosamente, a esquerda progressista e incrivelmente fantástica, humanista e compreensiva, consegue colocar-se ao mesmo nível a vítima e o agressor. É a partir dos nossos sofás confortáveis que devemos explicar, por exemplo, às famílias das 42 crianças mortas por Israel até à passada sexta-feira que têm de protestar pacificamente. Por exemplo, explicar-lhes que não podem apoiar uma retaliação perante uma potência colonizadora, porque até temos amigos que visitaram Jerusalém. Por exemplo, que as vítimas civis não têm justificação, mas se forem palestinianas não há monumentos com as cores da Palestina nas grandes capitais do mundo livre. Por exemplo, explicar-lhes que os colonos israelitas que os desalojam e ficam com as casas por direito divino não são os maus. Nem os que lhes tapam os poços com cimento. Por exemplo, dizer-lhes que é normal haver colonos a beber cerveja no cimo de montes, a assistir a bombardeamentos de civis por parte do exército israelita. Explicar-lhes isso tudo. Que os israelitas até saíram à rua para protestar contra o atual governo, de extrema-direita, mas os palestinianos são todos do Hamas. Dos poucos motivos para que haja toda esta simpatia para com Israel, prendem-se com a cor da pele e a sua forma de organização social e política. Dizia há uns tempos, sobre a Ucrânia, uma assessora do PS no Parlamento Europeu, que “se sentíssemos a mesma proximidade com todas as desgraças do mundo, independentemente da geografia, o nosso coração rebentava. A empatia tem, de facto, barreiras geográficas de autopreservação. É o que é. E negá-lo é só virtue signalling“.  Portanto, a nossa solidariedade é geográfica, mas apenas por motivos cardíacos, e todos sabemos o estado em que o PS está a deixar o SNS. Os não-brancos podem bem morrer lá ao longe, que a geografia transforma-se em pigmento, quando em causa está alguém mais claro, claro.

Malcolm X e os media

O militante revolucionário estado-unidense Malcolm X dizia, sobre o poder mediático, que “se não tivermos cuidado, os jornais vão fazer-nos odiar o oprimido e adorar o opressor”. E não mentiu. A peça de ontem à noite, na SIC, assinada por Henrique Cymerman, com música de elevador ao fundo, constituiu muito de propaganda e pouco de jornalismo. Entre ontem e hoje, Israel matou 91 crianças palestinianas, mas, como sabemos, a culpa é do Hamas. É aquela lógica muito americana de dizer que as armas não matam, as pessoas é que matam. Se não houvesse Hamas, Israel não matava. Como se não tivesse matado no tempo da OLP e da Autoridade Palestiniana. Esta limpeza do apartheid israelita nos media explica-se pelos interesses ocidentais em ter um Estado-fantoche naquela região, suportado por supostos textos sagrados e direitos divinos.

Da ONU a Gaza

Desde 2015, a Assembleia Geral da ONU, aprovou 140 resoluções a condenar Israel. Nenhuma delas teve quaisquer consequências. Retratam Israel como um Estado ocupante e desrespeitador dos direitos mais básicos daquele povo. A ONU não chega a Gaza. A Faixa de Gaza tem apenas 365 km², concentrando uma população de cerca de 2 milhões de pessoas, metade delas menores de idade. A maior parte dos edifícios que foi destruída nos bombardeamentos israelitas de 2008 e 2009, nunca foi reconstruída. Tem uma taxa de desemprego de 46% porque, simplesmente, não há no que trabalhar. É um campo de refugiados constantemente bombardeado. Só podem sair de Gaza para receber tratamentos médicos em Israel e, para isso, dependem de uma autorização de Israel. Depende da vontade de Israel para ter água, eletricidade, combustível e comida. Hoje mesmo, o ministro da defesa israelita anunciou um bloqueio total a Gaza. Disse o ministro que estão a combater animais. Não entra nada naquele campo de refugiados, que não venha pelos ares. E daquele céu só cai chumbo.

3 Comments

  • Filipe Manuel Rua

    11 Outubro, 2023 às

    Viva a Palestina.
    A Palestina tem direito ao seu país ocupado desde 1947.
    Cumpram se as resoluções das Nações Unidas.

  • Filipe Manuel Rua

    11 Outubro, 2023 às

    Viva a Palestina. Israel actua como Hitler.

  • João Carlos Pereira Veiga

    10 Outubro, 2023 às

    Palestina vencerá!

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