As mãos de Víctor Jara

Internacional

11 de Setembro de 1973. Avançava, Santiago adentro, o golpe militar fascista financiado pela CIA – e antecedido por um bloqueio económico – que levaria Augusto Pinochet ao poder. Ao longo dos 17 anos que se seguiram, muitos foram perseguidos, mortos, torturados, presos ou exilados, por se oporem à ditadura militar, fruto do famigerado Plano Condor, que se propôs, através da repressão, a desmantelar quaisquer tentativas de construção do socialismo, na América Central e do Sul, introduzindo ainda políticas de mercado livre cujas nefastas consequências se vêem ao longe.

Salvador Allende, democraticamente eleito, que encabeçava um processo transformador designado por “via chilena para o socialismo”, morre neste dia, durante o violento ataque ao Palácio La Moneda. O que sobra dos seus óculos é hoje um símbolo do sangrento golpe liderado por Pinochet. As suas últimas palavras são ainda um farol de firmeza: estava disposto a pagar com a vida a lealdade do povo. E pagou. Acreditava, pois, que não seria sacrificado em vão. “Sigan ustedes sabiendo que, mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor”.

Foi neste mesmo dia que Víctor Jara se despedira da sua esposa, Joan Jara, e pegara na guitarra que sempre havia, docemente, tocado a revolução, antes de rumar ao seu local de trabalho, a Universidade Técnica do Estado (actualmente, Universidade de Santiago do Chile), onde se encontraria com colegas e alunos. Juntos, decidiram passar lá a noite, resistindo às primeiras horas da ditadura que à força se impunha.

12 de Setembro de 1973. Logo pela manhã, as tropas golpistas invadem a UTE, detendo todos aqueles que lá se encontravam dentro. Entre os quais, Víctor Jara e a sua guitarra. Ao todo, seriam cerca de 600, que se haviam de juntar a milhares de outros resistentes, no antigo Estádio Chile, convertido num autêntico campo de concentração e tortura.

“A ese hijo de puta me lo traen para acá”, grunhe um militar, apontando para Jara, activo e destacado militante comunista. É aí que o cantor – e compositor e poeta e director de teatro e professor – é conduzido aos pontapés até ao mesmo, que começa, de imediato, a espancá-lo. Boris Navia, que assistiu a cada segundo, descreve como fora tremenda a fúria que o criminoso militar descarregara sobre Jara, golpeando-lhe o corpo e a cabeça, até quase lhe arrancar um olho à pancada. Descreve o som daquelas pesadas botas esmagando as costelas de Jara e como, doridas as mãos, recorre, enfim, à coronha da espingarda para mais facilmente lhe quebrar o crânio e o rosto. Descreve também o sorriso sereno que o bravo Víctor Jara mantivera o tempo todo e que mais atiçava o militar, o facho, incapaz de assimilar esse sorriso de quem se sabe, inquestionavelmente, do lado certo da história.

Coberto de sangue e exibido como um troféu, Jara é, nessa noite, interrogado, torturado e privado de comida e água. Está já isolado dos restantes e, como é próprio dos heróis, não racha.

13 e 14 de Setembro de 1973. Eis que o militar encarregue por vigiar Víctor Jara abandona, por momentos, o posto. Os camaradas, fiéis e atentos, não desperdiçam a oportunidade de resgatar Jara, que continua malnutrido e da cor do próprio sangue, escondendo-o entre os restantes prisioneiros. Para disfarçar os seus caracóis, ter-lhe-ão cortado o cabelo com um corta-unhas. E, sem comida à vista, só conseguiram arranjar-lhe um ovo cru. Jara terá feito um pequeno buraco na casca do ovo para poder ingerir o interior. Naquele momento, não falara de si, não falara das dores que sentia: falara apenas de Joan e das duas filhas.

Entretanto, reparam que dois dos prisioneiros estariam prestes a ser libertos. Os que ficam desatam a escrever mensagens aos familiares, e Jara escreve Somos cinco mil, o seu derradeiro poema. “La sangre del Compañero Presidente/ golpea más fuerte que bombas y metrallas./ Así golpeará nuestro puño nuevamente”.

É também por esta altura que os militares o avistam entre os outros presos. Arrastam-no e espancam-no diante de todos, com maior intensidade ainda, antes de o levarem novamente para a sala de tortura.

15 de Setembro de 1973. É de noite. “Cantante marxista, comunista conchadetumadre, cantor de mierda”, roncavam, enquanto torturavam Víctor Jara. Partem-lhe os dedos das mãos, não por acaso, mas por saberem que deles dependia a sua arte. E é pisando-os com as botas que já lhe tinham desfeito as costelas que lhos partem, sem piedade. Obrigam-no, depois, a tocar guitarra. Riem-se, insultam-no, golpeiam-no mais e mais. Já seria de madrugada. Apontam-lhe uma arma à cabeça e começam a jogar à roleta russa, até uma das balas atingir, por fim, o cantor, orgulhosamente marxista, e este cair, em convulsões, no chão. O soldado José Paredes Márquez é testemunha e o tenente Edwin Dimter Bianchi, O Príncipe, ordena que acabem com ele. É então que mais 43 balas atingem o corpo de Jara. Ao todo, 44 balas, mais balas do que anos de vida. 2 na cabeça. 6 nas pernas. 14 nos braços. 22 nas costas.

Os presos terão sido, coincidentemente, transladados deste Estádio Chile para o Estádio Nacional. Pelo caminho, tê-los-ão feito atravessar um recinto onde jaziam cerca de 40 cadáveres cobertos de um pó branco que lhes secara o sangue e encobrira o rosto. Novamente, Boris Navia crê reconhecer Jara, já sem vida.

16 de Setembro de 1973. É certamente de madrugada. Duas mulheres, perto do Cemitério Metropolitano de Santiago, encontram, num terreno baldio, seis cadáveres. Ao virá-los, também elas se apercebem de que Víctor Jara é um deles. Levam-nos a todos aos serviços médicos legais para serem devidamente identificados, porém, o médico de serviço, que logo reconhece o cantor, avisa a sua esposa com prontidão. 40 anos, 44 balas. 2 na cabeça. 6 nas pernas. 14 nos braços. 22 nas costas.

Joan enterra-o secretamente no Cemitério General de Santiago, numa campa cuja placa deixa sem nome, para que as tropas fascistas não pudessem fazê-lo desaparecer, como aconteceu com muitos homens e mulheres que resistiram. Hoje, o antigo Estádio Chile chama-se Estádio Víctor Jara. A sua própria – e tão linda – canção, El Alma Llena de Banderas, é um hino que nos recorda a sua força, para que continuemos o seu legado de luta. O que eles não sabiam é que, ao assassinar Víctor Jara, este logo se havia de converter numa combativa semente que continua a inspirar gerações de comunistas: “Ahí, enterrado cara al sol/ La nueva tierra cubre tu semilla/ La raíz profunda se hundirá/ Y nacerá la flor del nuevo día”. E, de facto, a alma enche-se-nos de bandeiras, bem vermelhas e destemidas, avançando contra o medo.

29 de Agosto de 2023. Espalha-se a boa nova. O Supremo Tribunal do Chile condena os militares responsáveis pelo sequestro e homicídio de Víctor Jara e Littré Quiroga a 25 anos de prisão efectiva. Foram rejeitados os argumentos da defesa contra a sentença proferida pelo Tribunal do Recurso, em Novembro de 2021. Tantas décadas após os hediondos crimes, esta notícia mantém-nos à tona, revigorados: a justiça tarda, mas a verdade está do nosso lado.

Edwin Dimter Binchi, Raúl Jofré González, Nelson Haase Mazei, Ernesto Bethke Wulf, Juan Jara Quintana já não escapam. Hernán Chacón Soto suicidou-se após tomar conhecimento da decisão do Supremo.

11 de Setembro de 2023. Volvidos exactamente 50 anos – data redonda – do golpe militar no Chile, a CNN Portugal, vassala do imperialismo, celebra, sem pudor. Chama ao golpe militar fascista uma revolução. Chama à repressão e à tortura, levadas a cabo por Pinochet, democracia. Sugere que o 11 de Setembro de 1973 restaurara a democracia nesse país latino-americano. A CNN Portugal, em directo e a cores, grita vivas aos 17 anos de ditadura fascista, branqueia o terror e reescreve, sub-repticiamente, a história, esperando que ninguém dê por isso. “Uma data que acaba, então, por ser também ela festiva, porque visa a reparação e a reconciliação em nome da democracia”. Palavras do pivot, enquanto o enviado especial a Santiago anui com a cabeça, por sinal, oca. Poderia ser ignorância, se deturpar a realidade, em nome dos interesses mais perversos, não fosse o passatempo preferido do grande capital, aproveitando-se da vulnerabilidade dos espectadores. A ofensiva reinventa-se, finge, mascara-se de progresso, todavia, também nós nos renovamos todos os dias, mantendo acesa a chama de Allende, de Jara, e dos tantos que tiveram de tombar, para que pudéssemos hoje ser vanguarda, nesse longínquo lado do Atlântico, e neste.

16 de Setembro de 2023. “Tu muerte, muchas vidas traerá”. É o verso que sempre ecoa neste dia em que, novamente e com força redobrada, não esquecemos os crimes do fascismo. Não esquecemos os ossos desfeitos das mãos de Víctor Jara e cá estamos para as vingar. Não perdoamos quem o matou. Lembramos: 44 balas. 2 na cabeça. 6 nas pernas. 14 nos braços. 22 nas costas. É o verso que aguça a memória e pensa o futuro.

Agora, cá entre nós, 44 balas não bastam para matar um sonho. Víctor Jara vive enquanto houver quem dele se lembre, assim, com a raiva crescer-nos nos dentes, e o amor à vida a acertar-nos o passo. Ora, “nosotros somos, porque existe el amor”. O que eles não sabem é que, por mais dedos que pisem, que esmaguem, que partam; por mais mártires que inventem, que torturem, que matem, nunca conseguirão matar o que nos move. Cortam um par de ramos, não chegam à raíz. Por cada dedo de Víctor Jara, uma centena de novos punhos se erguem, todos os dias, em direcção ao Sol. O que eles não sabem é que as mãos de Víctor Jara, as que derramam ternos acordes e escrevem luminosos versos, se multiplicam a cada golpe, mais fortes e sedentas de justiça. O que eles não sabem – e havemos de lhes ensinar – é que que as mãos de Víctor Jara residem inquebráveis nas nossas próprias mãos, que produzem, que lutam e que transformam. Eles não sabem, mas hão-de aprender: as mãos de Víctor Jara somos todos nós.

3 Comments

  • Agostinho Cerqueira

    5 Outubro, 2023 às

    Não o mataram. Semearam

  • Alfredo Lourenço Pinto

    21 Setembro, 2023 às

    Mesmos mortos os FASCISTAS ASSASINOS como o PINOCHE devem ser julgados permanente pela humanidade.
    A memória dos povos e eterna como é eterna a memória de VICTOR JARA.

  • Clemente Alves

    20 Setembro, 2023 às

    Que hino fantástico à luta e à vida, Milene Vale !

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