Chão nosso

Nacional

Do outro lado da margem um aglomerado salta à vista, de flâmulas vermelhas esvoaçantes e uma bandeira ao alto, cujo símbolo não deixa nada ao desengano. A foice, o martelo e a estrela em amarelo em pano vermelho vivo, sentinela de um tempo que marcou para sempre a vida dos trabalhadores rurais e industriais, dos do mar e da terra, dos do chão e do ar, dos que aprenderam o que é a unidade e dos que ainda a verão adiante.

Nesse símbolo, também sujeito ao vento, que a esta distância parece em câmara lenta, cabem lutas de séculos, e as que aqui mesmo, nesta região, como noutras de Portugal, também se travaram. Deram-lhe expressão e peito estômagos vazios, bocas com parcos dentes mas cerrados, como os punhos calejados, como as almas cansadas e as cabeças confusas, mas fartas de sofrer as injustiças a que alguém as ditou.

E eis que esses homens e mulheres sem rosto, alguns secretos como a vida das toupeiras, mas certos como a das formigas, não arredaram pé e derrubaram a cadeira que precisava de cair; o estrondo foi assombroso e, embora acudissem os pagens de um regime decrépito e cruel, disfarçando com uma encenação a que tiveram a coragem de chamar de Primavera, pobres carrascos ignorantes, o dia que amanheceu em esperança veio e, logo a seguir, um arraial para o festejar: primeiro em terra alheia, por uns anos, e depois em chão nosso, ali mesmo na outra margem.

Se nos aproximarmos desfaz-se a câmara lenta e o silêncio que, por instantes, nos fazem crer que observamos sempre de longe, para logo submergirmos nos sons e nos cheiros dos pratos típicos de todo o país, a serem cozinhados em simultâneo por caras alegres que ainda há pouco chegaram, ou que há já uns dias assentaram arraiais.

É isso, é uma arraial como os que o povo sempre soube fazer, ali encontra os sabores que são os seus, os costumes que não os intimidam, que antes os convidam a sentar, comer e beber em conjunto, a falar alto entre compadres e comadres, para os que ainda não lhe tomaram o jeito de chamar camarada com a boca segura de quem fala de igual para igual. Mas rápido se acostumam a ouvi-la em todo o lado, essa palavra que a cada vez que se usa, se agiganta, que quer dizer sempre mais qualquer coisa, que apelida uns e outros da mesma forma mas que significa tantas coisas, dependendo da hora, dos sorrisos cúmplices ou das últimas barreiras da vergonha ultrapassadas, e já significa amigo, homem, mulher, igual, nós. Pouco importará já a que horas é o concerto, ou a peça de teatro, ou o filme ao ar livre, ou o debate que se queria mesmo acompanhar, bem compreendido, importa no momento de se querer ver, mas o que se assoma perante os olhos é tão familiar que no peito cabem já todos os ritmos mesmo antes de os ouvir.

É nesta altura que sabemos que já estamos na Festa, ela já é nossa e não mais nos largará, e algo de diferente aí reconhecemos nos outros rostos, Aquele sorriu agora com mais vontade, parecia que era mesmo para mim, Aquelas estão alegres como quem me convida para me juntar, e esta alegria já não cabe só no peito e por isso anda escancarada em todos as caras, embora cada uma tenha os seus motivos, carregue na vida as suas dores, some nas mãos e no corpo as suas lutas, mas ali o que tem para oferecer é o sorriso, e é tão sincero que é por isso que parece agora diferente, porque já não tem amarras, já não se sente pequeno e hesitante. Porque embora seja tudo tão grande, também grandes são os sentimentos que crescem e ainda só cá chegámos há uma hora, falta o resto da noite e mais dois dias para saber que nunca mais encontraremos um sitio igual, que ninguém leve a mal, que a vida é feita também de muitos outros momentos especiais, festejos e brindes que marcam os corações, mas chão como este não se replica, até o cheiro da relva se distingue, até quando o sol se põe é de uma maneira que só para o ano voltamos a ver.

E chegado o fim do terceiro dia os sorrisos são já de saudade, os abraços que dizem Até para o ano, as despedidas que dizem Até amanhã, camarada, mas já não será aqui, será lá na nossa terra, que agora até parece mais bonita depois de a ver por aqui! E levamos connosco o Alentejo para o Minho, Trás-os-Montes para a Beira Baixa, as ilhas para Douro e o Algarve aqui escreve-se com um “L” só. Durante um ano sonharemos com esta terra amada, para logo voltar com a ansiedade com que as crianças felizes voltam para a escola, ou da escola para casa, Estamos quase a chegar e já se reconhecem as ruas dessa margem que o povo soube aproveitar, ventre onde se constrói uma terra sem amos, onde cada fio de vontade já perde a conta aos braços, onde não se perde a fé nos companheiros.

Aqui, durante 3 dias, não há amo nem senhor, não há patrão nem explorador. Constroem os trabalhadores com os seus amigos cada canto, e o mostram com orgulho, porque aqui os sorrisos sabem reconhecer o afinco e a dedicação com que ergueram esta cidade, este país, este mundo que cabe nesta margem de flâmulas vermelhas esvoaçantes, que se ficarmos bem calados conseguimos ouvir murmurar: de pé, de pé, não mais senhores. Eis a festa dos trabalhadores e do povo português.

Eis a festa que os comunistas constroem para todos, a maquete onde se pode espreitar e adivinhar o que seria se, para lá deste terreno, pudessem construir um país inteiro. Eis a Festa do Avante! Bem-vindos. E até para o ano!

5 Comments

  • Clara

    15 Setembro, 2023 às

    É mesmo isso, camarada. Só indo é que se entende . Já lá vou há mais de 35 anos e todos os anos desejo voltar…
    Viva a Festa do Avante!

  • Luis

    4 Setembro, 2023 às

    Durante anos, por vários motivos, fui adiando a ida à festa. Este ano não podia faltar e razões para estar presente eram muitas, mas quero destacar esta:
    Não sou comunista, mas quis com a minha humilde presença, manifestar a minha solidariedade com a Festa do Avante e com o PCP, depois da campanha negra e canalha, movida por muitos figurões da política e comunicação social, contra os artistas e integrantes da festa. Pois a esses, quero dizer que estava bonita a festa, pá!
    Eu gostei e para o ano quero voltar.
    Bem hajam

  • Lucinda Levita

    4 Setembro, 2023 às

    Que grande orgulho de ser deste Partido

  • Manuela Oliveira

    4 Setembro, 2023 às

    Maravilhoso 😍👏

  • fernando simoes

    2 Setembro, 2023 às

    LINDO!

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