Hiroshima nunca mais!

Internacional

Há 78 anos, com o Japão já encostado às cordas ao fim de 4 anos da guerra no Pacífico e o Exército Vermelho em condições de se juntar aos aliados nesse teatro de guerra, os EUA antecipam-se pelo controlo do Pacífico e largam uma bomba atómica em cima de Hiroshima, a Little Boy, uma bomba de Urânio. 70 mil pessoas tiveram morte imediata numa bola de fogo e luz mais quente que a superfície do Sol, tão quente que as sombras das vítimas e de outros objectos ficaram gravadas no chão e nas paredes em que foram projectadas. Outras 69 mil pessoas ficaram contaminadas pela radiação nesse momento e acabaram por falecer, dias, meses ou anos mais tarde, das consequências dessa contaminação – no Japão chamam-lhes Hibakusha – “vítimas da bomba”. Um número incalculável de pessoas de gerações posteriores continuou a nascer e a morrer com malformações, cancro, leucemia e outras complicações, uma consequência da contaminação radioactiva. Nesse mesmo dia, o governador de Hiroshima informou o imperador Hirohito que um terço da população morreu e dois terços da cidade foram destruídos.

Três dias depois, a 9 de Agosto, enquanto o imperador Hirohito reunia o seu Conselho Supremo para a Direção da Guerra para discutir a rendição, uma segunda bomba, a Fat Man, Uma bomba de plutónio, foi detonada sobre Nagasaki. 40 mil pessoas tiveram morte imediata, outras 25 mil morreram da contaminação. Mais uma vez, um sem-número de vítimas terão nascido e morrido nos anos seguintes com malformações congénitas.

Os números que citei acima são de fontes norte-americanas. Fontes japonesas apontam para 140 mil mortes em Hiroshima e 70 mil mortes em Nagasaki, imediatas ou por contaminação radioactiva, até Dezembro de 1945.

Ao longo das décadas, tem sido defendida a tese de que, apesar da monstruosidade, o uso de duas armas nucleares em Hiroshima e Nagasaki poupou muito mais vidas do que aquelas que ceifou, as que se teriam perdido se tivesse sido necessário invadir militarmente o Japão. Que apesar de tudo, as bombas colocaram um ponto final na guerra.
A verdade dos factos é que, provavelmente, a guerra teria o mesmo fim, na mesma data, com ou sem bombas atómicas. Hiroshima e Nagasaki foram o 67º e 68º bombardeamentos durante o verão de 1945. Em número de vítimas, Hiroshima está em segundo lugar. Em termos de área bombardeada, está em 4º. Em percentagem da cidade destruída, está em 17º. Quando Hiroshima foi bombardeada, já só restavam no Japão 10 cidades de grandes dimensões que não tinham sido bombardeadas. Antes de Hiroshima e Nagasaki, 66 cidades com dimensão semelhante foram destruídas, centenas de milhares de civis mortos. A bomba atómica não era absolutamente necessária para causar aquele nível de destruição. Os bombardeamentos de saturação (carpet bombings) cumpriam bem esse papel. Na noite de 9 para 10 de Março, 334 bombardeiros carregados com toneladas de bombas incendiárias partiram de Tinian para arrasar Tokyo. 41 km2 de área destruída, uma estimativa de 100 mil mortos e um milhão de desalojados. A este ataque – o maior bombardeamento de saturação da história militar até essa data – seguiram-se bombardeamentos semelhantes em Kobe, Yokohama, Yokosuka, Osaka, Nagoya, Hamamatsu, Kagoshima, e várias outras cidades.

Portanto, a única diferença entre esses 66 bombardeamentos e Hiroshima e Nagasaki foi o tipo de arma utilizada e não a escala de morte e destruição, dado que na II Guerra Mundial (e a partir dela) os bombardeamentos “estratégicos” foram, infelizmente, banalizados (Londres, Dresden, Varsóvia, Minsk, Sebastopol, Chongking…) razão pela qual, quando o ministro dos negócios estrangeiros, Tōgō Shigenori, pediu ao primeiro-ministro Suzuki Kantarō, a 8 de Agosto, dois dias depois de Hiroshima, que reunisse o Conselho Supremo para a Direção da Guerra para discutir o bombardeamento de Hiroshima, os seus membros recusaram. O que é que mudou entre a manhã de dia 8 de Agosto e a manhã do dia seguinte, para que os membros do Conselho Supremo tenham decidido reunir e deliberar pela rendição?

A declaração de guerra Soviética

Após alguns conflitos fronteiriços nos anos 30 do século XX, a União Soviética e o Japão assinaram em 1941 o Pacto de Neutralidade Nipónico-Soviético, em vigor até 1946. O Japão, que nesse verão de 1945 já via a derrota no horizonte, depois do ultimato de Potsdam, contava com a neutralidade soviética para negociar termos de rendição mais favoráveis, que não comprometessem a continuidade do império e a divindade do imperador. Uns meses antes, na Conferência de Ialta, em Fevereiro de 1945, Stalin tinha assumido o compromisso de entrar na Guerra do Pacífico três meses depois da derrota da Alemanha nazi, o que poria fim ao pacto entre a URSS e o Japão. No dia 9 de Maio de 1945 (fuso horário de Moscovo) a Alemanha assinou a rendição, logo, para honrar o compromisso assumido em Ialta, três meses depois desse dia, a 8 de Agosto, às 15h (hora de Moscovo) o Comissário do Povo para os Negócios Estrangeiros, Viatcheslav Molotov, chamou ao Kremlin o embaixador japonês em Moscovo, Satō Naotake, para lhe apresentar a declaração de guerra da URSS ao Japão. Até esse momento, o Japão contava que a URSS fosse um árbitro favorável na discussão dos termos da rendição aos aliados (porque à URSS não conviria um Japão rendido aos interesses norte-americanos), mas a partir desse momento a saída diplomática tornou-se impossível, e a saída militar, se não impossível, muitíssimo mais difícil. Uma hora depois da declaração de guerra, quando seria já meia-noite de dia 9 de Agosto na outra ponta do território russo, a URSS lançou uma invasão da Manchúria em três frentes, pondo fim ao Manchukuo, estado-fantoche japonês, lançaria dois dias depois a invasão de Sacalina, 7 dias depois disso a invasão das Ilhas Curilas. Com o controlo de Sacalina, ficou a uns escassos 43 km de Hokkaido, a segunda maior das ilhas japonesas. Uns meses antes, o vice-chefe de estado maior do Exército Imperial Japonês tinha dito “A absoluta manutenção da paz nas nossas relações com a União Soviética é imperativa para o continuar da guerra”.

Foi portanto com a declaração de guerra e a consequente invasão da Manchúria, com os soviéticos a poucos dias de invadir o arquipélago e os norte-americanos já com o controlo de Okinawa, que o imperador Hirohito, vendo-se agora a combater uma guerra em duas frentes com duas potências militares mais poderosas que o Japão, convocou nessa mesma madrugada e para a manhã seguinte o Conselho Supremo para a Direção da Guerra para discutir a rendição. Note-se ainda que no Conselho três dos seus membros votaram a favor e outros três votaram contra, tendo sido o voto do imperador a desempatar a favor do final da guerra. A rendição foi formalmente assinada no dia 15 de Agosto, quando as tropas soviéticas já tinham assegurado o controlo da Manchúria, de Sacalina e das Curilas.

O que aconteceu em Hiroshima não foi um acto de guerra contra o Japão, foi uma demonstração de força do presidente Truman e dos EUA contra Stalin e a URSS, foi uma garantia de que os interesses norte-americanos no Pacífico não eram beliscados, que a ocupação de Okinawa iria continuar e permitir moldar a sociedade japonesa do pós-guerra à sua imagem, expandindo e reforçando os interesses militares, económicos e diplomáticos dos EUA na região. E por último, justificar o investimento público na bomba. Seria uma vergonha que a percepção pública fosse que a URSS tinha conseguido em 4 semanas e com armas convencionais aquilo que os EUA não conseguiram em 4 anos e milhares de milhões de dólares e vidas humanas depois. A bomba foi a confirmação desnecessária duma guerra que estava ganha a partir daquele momento. Repito e reforço, não pela acção isolada da URSS, mas porque a entrada da URSS na Guerra do Pacífico complicou irremediavelmente a situação do Japão. E como tal, pela frieza e o utilitarismo da decisão, e instantaneidade do momento, é, na minha opinião, um dos maiores crimes contra a humanidade da nossa história.

Nunca foi julgado.

Não esquecemos. Não perdoamos.

Hiroshima nunca mais! Nagasaki nunca mais!