Os ventos de África

Nacional

De tempos a tempos, em Portugal, fala-se muito de poeiras vindas de África trazidas pelo vento, que deixam o céu escuro e o sol escondido por trás do que o Sahara faz questão de partilhar connosco, que causam dificuldades respiratórias, chegam ao retângulo e nos cobrem de um manto que não nos deixa ver mais longe. Uma espécie de nevoeiro que cobre a visão e só nos permite ver pouco mais do que o nosso umbigo. Enquanto isso, em África, parece haver novos ventos que se levantam, com uma clareza e objetividade que não temos por cá.

O céu escuro e o sol escondido que vamos tendo em Portugal e um pouco por toda a Europa coloca uma capa sobre aquilo que somos capazes de ver a olho nu, o que faz com que nos seja mostrado através de olhos que não são os nossos. E assim formamos as nossas opiniões através de outros olhos e outras palavras, outras interpretações. É a Europa fechada sobre si mesma, incapaz de encontrar uma identidade própria nas Relações Internacionais e na forma como encara a maior parte do Mundo que, normalmente, fica fora daquilo que os media consideram a “comunidade internacional”, expressão que quer dizer coisa nenhuma. A incapacidade de olhar para um mundo que já foi seu como independente, soberano e capaz de defender os seus interesses, vai acabar por afogar a Europa no mar que fecha aos que fogem do que a Europa provocou. Desta vez, há um espectro negro a pairar sobre a Europa, com a extrema-direita a estabelecer-se como força política legítima, quando não avança para os governos.

Olhos no passado
e no futuro

Numa parte de África, nos últimos meses, parece levantar-se uma nova esperança num novo tempo para os povos daquele continente. Burkina Faso, Mali e Níger tomaram medidas duras em relação a potências estrangeiras que veem aqueles Estados como poços infindáveis de matérias-primas e mão de obra escrava. Se o poder colonial já não se exerce através da administração direta dos territórios, exerce-se, por outro lado, através do controlo das elites políticas e económicas africanas, submetendo aqueles povos à mais crua miséria. A Nigéria é, ainda, um exemplo claro desse domínio e, depois de o Níger anunciar o fim da exportação de urânio e ouro para França, cortou o fornecimento de energia ao Níger, que representa 70% da utilizada no país. Curiosamente, o Níger fornece cerca de 15% do urânio de que a França necessita para produzir eletricidade, que depende em 75% daquele mineral. Uma empresa francesa extrai urânio com um custo de cerca de 10 dólares e vende-o no mercado acima dos 200. O paradoxo está à vista. O Níger é altamente dependente da Nigéria para ter eletricidade, ao mesmo tempo que fornece a França com o mineral poderia garantir-lhe uma autonomia energética essencial para conseguir uma diminuição da dependência externa. É também por isto que a emancipação dos países africanos não interessa aos poderes dos países exploradores. Imaginemos que o Níger possuía a tecnologia necessária para ser autossuficiente em termos energéticos. Deixaria de depender da Nigéria e passaria até a poder exportar energia.

As ameaças

A par do controlo das elites, surge a enorme dependência de organizações internacionais que perpetuam e agravam a situação de dependência destes Estados. A UE, obviamente, que cortou todos os financiamentos ao Níger, defendendo assim os interesses franceses, e a CEDEAO, Comunidade Económica dos estados da África Ocidental, da qual Níger, Mali e Burkina Faso também fazem parte. Dessa organização, Nigéria, Costa do Marfim e Senegal afirmaram já estar disponíveis para intervir militarmente no Níger. Contudo, mesmo nestes países, a vontade das elites que os comandam não tem adesão numa parte da população. Há violentos confrontos no Senegal, nos últimos dias, fruto da oposição ao governo, ao passo que os nigerianos não veem com bons olhos uma intervenção armada no país vizinho. Por sua vez, Mali, Burkina Faso, Guiné, Chade, Libéria e Mauritânia, que abandonou a CEDEAO em 2002, afirmaram que qualquer intervenção militar externa naquele Estado terá oposição militar. Há uma nova geração de líderes africanos que, depois do fim da URSS, vê, com a reconfiguração multipolar que está a ocorrer no Mundo, uma nova oportunidade de fazer dos seus países mais do que o jardim das traseiras da Europa.

Os desafios

Há milhares de africanos treinados por potências estrangeiras, dos EUA à França e não só, que, não raramente, acabam por ser agentes relevantes em sublevações, tentativas de golpes de Estado e golpes de Estado consumados. O primeiro grande desafio é para aqueles que encabeçam estas tentativas de limpar os restos coloniais que continuam a atrasar o desenvolvimento dos países africanos. Patrice Lumumba e Thomas Sankara que o digam, o primeiro assassinado pela Bélgica e EUA, o segundo pela França. O segundo desafio é de visibilidade. Nenhuma revolta em países africanos atrai atenção mediática fora dos países colonizadores. Em alguns casos, nem nos países colonizadores, como é o caso de Moçambique e da atividade dos terroristas da Ansar al-Sunna, um franchise do Daesh, no norte do país, na província de Cabo Delgado. Ninguém por cá quer saber muito disso. Outro exemplo: há dias, um canal de televisão fazia reportagem sobre a vaga de calor e os incêndios junto ao Mediterrâneo. Começou pelos dois mortos na Grécia, os dois pilotos do avião que caiu no combate às chamas, passou pelos incêndios em Itália e, no fim, falou dos 34 mortos nos incêndios na Argélia, onde se incluem dez bombeiros. Aqui, a questão não são os números de vítimas das tragédias, mas a sua localização geográfica, morreram mais na Argélia mas há um mar que nos separa. Também por isso, qualquer intervenção externa no Níger terá pouco ou nenhum escrutínio por cá, porque é em África e ensinaram-nos que em África é assim. Não haverá horas de debates nem de programas especiais. Por fim, e o mais relevante de todos, é o longo caminho para a independência de facto dos países africanos das elites que os governam e se governam, da criação de instituições do Estado que funcionem e garantam proteção e direitos a todos, da agricultura e indústria daqueles países. Os passos dados em frente nas décadas de 60 e 70 do século passado tiveram golpes duros depois da queda da URSS, mas esta reconfiguração geopolítica é mais uma oportunidade para que possa concretizar-se, finalmente, a libertação africana do colonialismo e do imperialismo.