Palestina. Quando resistir é existir.

Internacional

Há dias, em Lisboa, um grupo de turistas altos, brancos e de olhos azuis insultou vários entregadores imigrantes da Glovo que levavam bandeiras da Palestina nas suas bicicletas momentos depois da concentração em solidariedade com o povo palestiniano. Uma amiga, chocada, testemunhou tudo e contou-me o episódio, ontem, durante o concerto de Omar Souleyman. O músico sírio que ganhou fama a cantar em casamentos gritou várias vezes Palestina para o público. Entre a multidão, havia bandeiras da Palestina e os aplausos subiam de tom, assim como os gritos a favor do povo palestiniano. Em determinado momento, alguém, com um olhar de ódio, e sobretudo de derrota, atravessou o mar de gente com a bandeira de Israel no ecrã do telemóvel e abandonou o concerto. Tão só como a bandeira de Israel no castelo de São Jorge, tão só como os que se concentraram fechados num hotel para legitimar o genocídio de um povo. No fim do espectáculo, foram muitos os que se juntaram aos donos das bandeiras palestinianas. Portugueses e imigrantes gritavam juntos. Não é estranho. Como afirmou Ghassan Kanafani, “a causa palestina não é apenas dos palestinos, é uma causa de todos os revolucionários, das massas oprimidas e exploradas de nossa era”. O escritor maior da causa da libertação da Palestina, que escreveu sobre o exílio forçado do seu povo, foi assassinado em 1972 por Israel em Beirute mas assim tem sido durante durante mais de meio século.

A Europa tem medo do que aí vem e de perder o seu lugar no mundo. Os Estados Unidos foram, desde a Segunda Guerra Mundial, a trave mestra de um poder que se dilui e para o qual não há substituto no Ocidente. A ideia de civilidade associada à Europa é tentadora mas é um tigre de papel. Capaz dos mais insidiosos crimes ao longo de séculos, perde agora a sua influência nas ex-colónias para países do Sul Global e abandona definitivamente a ideia de autonomia face a Washington. A Europa tem medo. Mas a Europa que tem medo é a Europa política e económica. É o poder. Porque, na verdade, não existe uma Europa única. É um continente profundamente desigual, com enormes contradições, sobretudo na periferia, no qual as trabalhadores e os trabalhadores têm mais a ganhar do que a perder com a derrota do actual sistema desumano que nos lança no precipício da exploração e da miséria.

Há anos, quando era adolescente, jogava Risco com amigos. Depois de muitas horas, quando um de nós estava prestes a ganhar, alguém atirou o tabuleiro ao chão. Depois de muitos protestos, cada um foi para sua casa. O tabuleiro moral da Europa funciona assim. Condenam a Rússia mas apertam a mão a Israel, atacam a Líbia mas fazem negócios com todo o tipo de ditaduras, desde que alinhadas com Washington e Bruxelas. A barbárie muda de nome consoante as circunstâncias. Israel só se comporta desta forma porque tem as costas quentes, porque é um aliado estratégico do Ocidente. O crime legitima-se quando os polícias do mundo são cúmplices dos criminosos. Como no Risco, as regras só importam quando servem para proteger os nossos interesses.

Certo dia, apresentaram-me Leila Khaled, histórica combatente e dirigente da Frente Popular de Libertação da Palestina. Com apenas quatro anos, como centenas de milhares, teve de fugir de Haifa com a família para o Líbano. Como a maioria das casas, a sua foi ocupada por colonos israelitas. Há quem até possa julgar a decisão que levou esta mulher a sequestrar dois aviões mas, se somos compreensivos com as lutas de libertação nacional que percorreram todo o século XX, se uma parte da liderança política europeia aceita o recurso da Ucrânia a atentados contra civis na Rússia, o que nos torna solidários com a Palestina apenas quando esta é atacada e nunca quando se defende?

Nesse mesmo dia, Fayez Badawi contava-me, ao lado de Leila Khaled, que quando era criança queria muito combater pelo seu povo. Leila Khaled explicou-me que pôs a kalashnikov de pé ao lado dele e disse-lhe: “Quando fores mais alto que o cano do fuzil, deixamos-te combater”. Anos mais tarde, Fayez Badawi combateu Israel nas trincheiras libanesas. Não é uma história que se entenda facilmente quando nunca se viveu num campo de refugiados sabendo que do outro lado da fronteira há uma casa da família que está ocupada por colonos.

É um facto, a morte de civis em qualquer contexto é um crime. Mas, como disse Frantz Fanon, é o colono e o seu Estado que ensinam ao colonizado a prática da violência. O oprimido exprime-se assim porque é a única linguagem que o opressor entende. O monopólio da violência existe, no caso de Israel, porque Israel é um protectorado norte-americano. Se o Ocidente quisesse, Israel não teria outro remédio senão aceitar a existência de um Estado palestiniano. Sem o apoio estratégico de Washington e Bruxelas, o apartheid e a colonização caíriam como um baralho de cartas. E a Europa tem medo. Tem medo porque sabe que, se o Sul Global ganhar protagonismo e ganhar força um mundo desalinhado com Washington, a Palestina terá, definitivamente, um Estado livre e soberano. É por isso que é higiénico, urgente e necessário uma Europa do mundo e não um mundo da Europa. Uma Europa plural e verdadeiramente democrática.