O romance polifónico do fascismo português

Nacional

Ilustração de Gonçalo Salvaterra

Um ex-ministro do fascismo, o seu filho covarde, a criada que continuadamente viola, a governanta que o venera, um veterinário pedófilo que estaciona e se baba à entrada da Escola Secundária; a filha ilegítima parida no meio da palha que nem os animais quiseram comer e entregue, depois, a uma retornada de Angola; a jovem amante em quem projecta a mulher que o abandonou, a terapeuta ocupacional que cuida de si no final da vida; uma espiral doentia de escárnio e maldizer e, como se não bastasse, muito mais. É através de uma viagem, feita pelo Lobo Antunes-psiquiatra, ao âmago da maldade e da mesquinhez de 19 personagens, que o Lobo Antunes-escritor traça o mais visceral retrato do fascismo português, sentando num divã feito banco dos réus, estas personagens fictícias e tão tenebrosamente reais, em O Manual dos Inquisidores.

António Lobo Antunes não é nada que se pareça com um revolucionário. Eis então que uma obra pode ser, à sua maneira, revolucionária, sem que o seu criador o seja, não só na estrutura e na forma, mas também no conteúdo e na intenção. Que nos perdoe o autor, mas sem qualquer informação acerca de si, poderíamos dizer que se trata de um perigoso comunista alérgico à direita, à burguesia e a todos os seus perversos alicerces; um verdadeiro subversivo, alérgico ainda a toda a sua frivolidade e que, de facto, considera a direita portuguesa, herdeira por excelência dos tiques salazarentos do Estado Novo, a mais desgraçada e letal das maleitas que assombram este país. O autor apresenta-se ao serviço para dessacralizar, sem piedade, os valores do fascismo português; vem “atrapalhar as rezas à Virgenzinha de plástico fosforescente na prateleira do cartuxo vazio da massa”.

I

Se foi Dostoievski o responsável por introduzir, na literatura, a pluralidade de vozes, que se entrelaçam e se relacionam entre si em condições de igualdade, em detrimento da figura do narrador centralizador, foi o conterrâneo Bakhtin quem baptizou esta modalidade que reinventa a estrutura narrativa, introduzindo a categoria de romance polifónico. Dando um grande salto, de Dostoievski a Lobo Antunes, este último, em 1996, com a publicação d’O Manual dos Inquisidores, dera um arrepiante contributo a essa sub-categoria do romance. N’O Manual, os que eram outrora inquisidores são agora inquiridos como nunca foram na realidade, esvaziando-se de todos os seus pensamentos mais obscuros e reles, que nos são apresentados de uma forma fragmentada e delirante e que, por seu turno, impede uma leitura acomodada ou passiva, inserindo-nos a nós, leitores, numa desconcertante dialéctica da memória. O Manual vem até nós em peças que teremos de montar; em episódios dispersos, contados por pessoas que temos a sorte de nunca vir a conhecer, mas que nos fornecem a perspectiva que faltava para a reconstituição de uma história construída sobre sujas cadeias de repressão, racismo estrutural e anti-comunismo.

Retomando uma ideia anterior, consideremos as palavras de Umberto Eco acerca de uma literatura despojada de real impacto ou novidade como “máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte do seu trabalho”, estabelecendo, uma vez mais, que é isso mesmo que Lobo Antunes rejeita, propondo antes um labirinto paranóico que o leitor terá de enfrentar, já que o narrador como guia turístico ao longo da densidade da obra, a que nos habituou a maioria dos romances, não tem aqui lugar. É um caso de “perda da identidade do autor”, como diria Barthes. O autor dissolve-se, dilui-se, no meio da rotatividade de vozes; submerge nesta polifonia ensurdecedora. O registo oral que Lobo Antunes adopta aproxima-nos dos grandes monstros que residem em todos os dantescos círculos do inconsciente destas personagens. É uma leitura incómoda e impaciente, e, por isso mesmo, é também cativante do princípio ao fim.

II

O Manual dos Inquisidores vai do período salazarista ao pós-25 de Abril, passando, naturalmente, pelo PREC e visando, de várias maneiras, a reposição da verdade através da memória. É composto por cinco grandes blocos precedidos por enigmáticas epígrafes e que, no seu interior, contêm relatos e comentários. Os relatos são feitos pelas cinco personagens que poderemos considerar as principais – João, o filho do ministro; Titina, a governanta; Paula, a filha ilegítima; Milá, a jovem amante; Francisco, o excelentíssimo – e os comentários, que interrompem os cinco relatos, são proferidos pelas 14 personagens secundárias. Dito isto, quem realmente protagoniza a obra em apreço é a crueldade. Os narradores, dos verdadeiros fascistas aos ditos pobres de direita, revezam-se, mas a crueldade – resultante da cooperação entre a astúcia do psiquiatra e a virulência do escritor – é constante. Se Francisco, o ministro, personifica o próprio regime e, mais concretamente, o seu pior, os restantes representam os diversos tentáculos desse regime, frutos podres que são do corporativismo.

Urge aprofundar, então, as relações sociais em causa à luz do corporativismo como forma de impor, na economia, o darwinismo social e a competição entre fracos e fortes, característica da sociedade capitalista. A criação de organizações corporativas administradas pelo Estado, que sub-repticiamente substituem os sindicatos e pretendem difundir a ideia de que patrões e trabalhadores trabalham para o mesmo, com o objectivo medular de impedir a luta de classes, é também um elemento indispensável para o entendimento das relações interpessoais tóxicas descritas por Lobo Antunes. A mentalidade destas personagens e a forma como agem são precisamente reflexo do corporativismo, cujo desprezo pelos interesses dos trabalhadores se disfarça de condescendência e ilusão entre as classes. É este fascismo beato e polido que se senta junto de Milá à mesa, pela hora do chá, e a faz confessar aos seus botões: “o professor Salazar que mandava no país inteiro (…) a tratar-me por minha senhora, a tratar-me por menina (…) o professor Salazar que eu não acreditava que prendesse pessoas, as mandasse torturar”. Contrasta com esta perspectiva ingénua a posterior exposição do quotidiano bárbaro de um preso político que “gatinhava em círculos a grunhir na frigideira do Tarrafal à procura das fezes no apetite de comê-las”.

O Estatuto do Trabalho Nacional, aprovado por decreto-lei em 1933, é a tradução com pouquíssimas alterações da Carta del Lavoro, de 1927, apresentada pelo Partido Nacional Fascista de Mussolini, também adoptada pela Alemanha nazi. Isto para os que acham e reiteram que cá não houve fascismo nenhum.

Voltando ao Manual, este não só espelha como faz em frangalhos o corporativismo e todos os seus esquemas, responsáveis pela corrosão das relações humanas, particularmente entre trabalhadores e patrões. Na Alemanha nazi, argumentava-se que o capitalista judeu explorava a classe trabalhadora, enquanto o capitalista ariano, pelo contrário, era compreensivo e protector, adoptando uma atitude altamente paternalista. Em Portugal não é diferente. Aquela que é, talvez, a tirada mais icónica do livro, dita repetidamente por Francisco e feita eco na memória dilacerada de outros – “faço tudo o que elas querem mas nunca tiro o chapéu da cabeça para que se saiba quem é o patrão” – prova-o bem. A confusão entre domínio total e protecção paternalista que vai na cabeça de Titina faz com que esta, disposta a tudo, eleve o patrão à categoria de divindade. É também o suficiente para que a governanta corresponda eximiamente ao padrão, exposto por Paulo Freire, do oprimido que sonha ser opressor. Num lar da Santa Casa da Misericórdia, perto da senilidade e largos anos após a Revolução de Abril, aguarda ainda o seu resgate e não tem dúvidas de que “o senhor doutor e o Joãozinho não descansam enquanto não me toparem em Alverca (…) que telefonaram à Judiciária, aos hospitais, à morgue, botaram anúncios a oferecer recompensas de quinhentos escudos”, convencida de que era mais que uma criada.

III

O reparo de Maria Alzira Seixo em relação aos romances antunianos – “romances de achegas e de restos” – é adequado a O Manual dos Inquisidores quando pensamos nos jogos de memória e na fragmentação do espaço-tempo. Logo na primeira linha, João desabafa que “ao entrar no tribunal em Lisboa era na quinta que pensava”. Assim, é perceptível à partida que coexistirão sempre o passado (representativo do poder) e o presente (onde só sobram os cacos). Apresenta-nos também a quinta de Palmela, residência do ministro, como símbolo do Portugal antigo, rural e latifundiário, que, no tempo presente, se tornara num complexo habitacional de luxo, propriedade do tio de Sofia, ex-mulher de João, e símbolo de um Portugal contemporâneo manipulado pelos mesmos vampiros. Ou seja, a riqueza e a propriedade mudam de figura, mas não mudam propriamente de mãos, se acabarmos com o fascismo sem acabar com o capitalismo.

Caída a fachada do corporativismo, falemos agora de capitalismo e da sua verdadeira natureza. Ao invés de Francisco, que é em tudo provinciano, este tio da ex-mulher de João é o retrato do capitalista selvagem. Em tom de confissão, expõe, sem pudor, os interesses nefastos da sua classe e o absoluto desdém pelos mais pobres, como se estes fossem de uma outra espécie: “por mais que a gente os eduque (…) continuam a dizer lábios em lugar de beiços, funeral em lugar de enterro, vermelho em lugar de encarnado, prenda em lugar de presente, vista em lugar de olho”. Esta personagem é o pretexto para que o autor possa tecer uma crítica feroz ao capitalismo, tornando-a assumidamente mais fascista do que o próprio Governo e descosendo-se ao ponto de afirmar que não consegue conceber a democracia, regime em que o seu voto valeria “o mesmo que o de um sujeito emancebado”, e que “a grande asneira do Salazar foi ser tão ingénuo que consentiu que essa gentinha (…) comprasse andares no Cacém”. Não é difícil imaginar os grandes capitalistas da actualidade a dizerem o mesmo quando ninguém os ouve, já que é de miséria alheia que enchem o depósito do jato privado. A sobrinha Sofia, imagem da futilidade e do parasitismo da alta burguesia, chega até “a ter inveja (dos pobres) porque sua única obrigação é esperarem que a gente os visite e irem à consulta da tuberculose de modo que sobram dias inteiros para o que lhes der na real gana, pedir esmola, tossir, ter filhos, vasculhar os caixotes, brincar com as crostas das feridas”. O capitalismo, bem representado por estes dois, é n’O Manual o que é na realidade – opressivo, castrador e assassino.

É sobretudo através do comentário do tio de Sofia que somos confrontados com uma das facetas mais pertinentes da obra – a desconstrução do mito, que sobrevive até aos dias de hoje, de que no Estado Novo não havia corrupção. Com uma pontaria surpreendente, Lobo Antunes expõe a promiscuidade entre o Estado, os negócios e o capital monopolista; o nepotismo e as cunhas. A desmistificação da ideia, também recorrente, de que o fascismo português foi brando, é conseguida ainda com uma abordagem brutal do colonialismo e da guerra – “damos a África aos pretos ou não damos a África aos pretos” – uma vez que, como estes “nascem às ninhadas”, não há problema se morrerem uns quantos pelo caminho.

IV

Ao nível histórico-temático, O Manual dos Inquisidores é detentor da mais brilhante paródia da trilogia do regime salazarista – Deus, Pátria e Família – e apresenta cada um dos seus valores como máscaras mesquinhas e toscas. Se estava já estabelecido que um dos objectivos nucleares da obra é a exploração do lado mais grotesco das instituições portuguesas nas mãos da direita, diga-se que, além das instituições estatais, a mais dissecada será a da família. É sem surpresas que a família, n’O Manual, corresponde a um grupo de pessoas que se desprezam mutuamente, mas, sobretudo, a um instrumento infalível para a preservação da propriedade privada. Há uma ironia peculiar que revela ser a ferramenta mais eficaz para um outro objectivo central do autor: a dessacralização dos mitos e da pretensa identidade portuguesa. Recorrendo ao cúmulo da crueldade, Lobo Antunes inaugura um tipo de humor sórdido que, ao invés de menosprezar os crimes do fascismo, os enfatiza. Os criminosos, a propósito, não mostram quaisquer remorsos. Evocando novamente o soviético magnífico que foi Bakhtin, “é justamente o riso que destrói a distância épica”. O riso do leitor é, aqui, um prego no caixão do Império. Entre outros episódios, a carnavalização – outro conceito de selo bakhtiniano – de Milá, forçada a vestir as roupas antigas de Isabel, ex-mulher do ministro, por ordem do próprio, acaba por ridicularizar Francisco – “um vendaval confuso de ordens e de pêlos” – e os fetiches insalubres que o movem, a ele e ao regime.

Um dos melhores exemplos do triunfo da ironia antuniana nesta jornada de dessacralização é-nos apresentado pela retornada que acolhe Paula: “a Cova da Piedade, senhores, a mesma desgraça do que em Angola com a diferença de os pretos sermos nós (…) como se morrer de fome onde os pretos somos nós fosse melhor do que morrer de fome onde os pretos são outros (…) como se Portugal fosse um país/ deixem-me rir/ em que merecia a pena morar, com o sol a colorir a pobreza e o mar por toda a parte principalmente onde não desejávamos que estivesse (…) se houvesse menos mar plantávamos batatas e jantávamos, existindo nesta terra um Governo inteligente vendia logo a porcaria do mar e do calor aos suíços que são ricos ou aos ciganos que são espertos”.

V

Há que concluir com uma outra reflexão ainda. Ao lermos os testemunhos delirantes – pejados de obsessão e de repetições anafóricas que a sustentam – destas personagens, sabemos que não estamos a ler ficção científica; sabemos que não é uma distopia distante que nos é servida. Sabemos que existem, na vida real, pessoas que pensam desta forma amarga e saudosista. E também sabemos que assim é devido à perpetuação dos mitos já elencados. Quando testemunhamos a vegetação do corpo do ex-ministro, é certo que tal nos leva a estabelecer um paralelismo entre a perda do domínio sobre o corpo e, simultaneamente, sobre o país. Se a infantilização da linguagem médica – “chichi senhor doutor chichi” – e da fantasia de poder humilha, de algum modo, o ex-ministro, as entrelinhas alertam-nos para algo mais que deveríamos ter em conta: porque é que este estafermo está a morrer de velhice no luxo de uma clínica privada?

A mensagem política mais forte, patente em O Manual dos Inquisidores, vem quando nos cai a ficha – estes depoimentos que lemos nunca foram ouvidos pela justiça portuguesa. Os ministros do fascismo nunca foram julgados, nunca foram punidos pelos seus crimes, nunca viram o sol aos quadradinhos para vingar o sangue que lhes pinga das garras. A impunidade destes e outros é a lezíria onde crescem ainda os mitos que branqueiam as atrocidades do fascismo. Onde o fascismo é derrubado mas o capitalismo se aguenta de pé, os fascistas e seus fantoches são reintegrados; preservam a riqueza e o estatuto; mantém os seus cargos públicos mergulhados na cosmética da democracia burguesa. Foi a impunidade que permitiu ao ex-ministro fascista José Hermano Saraiva ensinar história aos comuns mortais, na RTP; foi a impunidade que lavou em lágrimas os telejornais no dia da morte de Adriano Moreira; é a impunidade que concede aos ex-ministros fascistas ainda vivos garrafas de champanhe e dias ao sol, na sua ilha de eleição. Entretanto, é Abril outra vez.

3 Comments

  • António Várzea

    8 Abril, 2023 às

    25 de Abril Sempre. Fascismo nunca mais.

  • Clara Santana Rita

    4 Abril, 2023 às

    É verdadeiramente incontestável o talento da autora desta análise literária, não obstante a cuidadosa observação social relatada pela inimitável escrita de Lobo Antunes.

    • Helena Pena da Costa

      5 Abril, 2023 às

      Só agora li, com atenção, a belíssima crítica q me enviaste. Despertou-me o “bichinho”. Obrigada, Clarinha.. Já está registado como próximo!
      Foste uma querida!

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