O tempo disse ao tempo que o tempo tinha quanto tempo o tempo tem: quanto tempo tem o teu tempo?

Nacional

Adaptabilidades e flexibilizações. Adaptabilidade total do trabalhador ao tempo e vontade do patrão. Adaptar a sua vida, a vida da sua família, a sua actividade política, o seu direito ao repouso e ao descanso à necessidade de maior ou menor exploração. Uma espécie de mealheiro, onde o patrão guarda as horas que entende, para gastar quando entende, como entende.

A adaptabilidade grupal, a adaptabilidade individual, o banco de horas. Tudo mecanismos que aumentam a jornada de trabalho pelo mesmo salário, porque estas horas a mais são pagas como horas normais ou não são pagas, em troca de horas de descanso. Cabe ao patrão dizer se sim, se não e quando. E de que horas a mais se fala? 50 horas por semana. 60 horas por semana. 40 horas na administração pública. Fim do pagamento do trabalho suplementar ou o seu pagamento irrisório. Em dias que o patrão decide, sem plano nem antecipação. Traz-me à memória uma cena de um filme sobre um pugilista operário: em frente ao portão o capataz escolhia os mais musculados, os que pareciam ter menos fome para trabalharem naquele dia, nos idos de 1929. As nossas praças de jorna que chamavam os trabalhadores com a sirene. Se esta não soava, era um dia sem trabalho, sem pão.

E agora? Amanhã preciso de ti mais 2 horas. Sábado vou precisar de ti. Domingo também. E com a meia hora serei teu amigo, vens trabalhar 10 horas ao fim do mês. Mas não recebes.

A luta organizada dos trabalhadores impôs alterações aos horários selváticos praticados em Portugal, ou melhor, à inexistência de horário (?). De sol a sol, aos trabalhadores nunca ninguém deu nada, mas a sua luta determinou alterações na lei, na vida e no progresso social: a 23 de Março de 1891 fixou-se o período de trabalho de oito horas para os manipuladores de tabacos. A 14 de Abril de 1891 estabeleceu os limites do período normal de trabalho dos menores nos estabelecimentos industriais. Em Agosto de 1907, o descanso semanal é fixado ao domingo, para a generalidade das classes trabalhadoras. Em Janeiro de 1911 (com versão reformulada em Março seguinte), revogando a legislação de 1907, mantém-se o descanso semanal de 24 horas, se possível ao domingo, se não, «num dos primeiros três dias normais depois do domingo em que trabalharam». Consagra-se, incipientemente, a irrenunciabilidade do direito ao descanso.

A 22 de Janeiro de 1915 é fixado em dez horas por dia e sessenta por semana o tempo normal de trabalho diário no comércio e na indústria. Em 1919 nasce o dia de oito horas e a semana de quarenta e oito, que se aplicavam genericamente a todos os trabalhadores.

Em 1962, a Conferência Internacional do Trabalho adopta a Recomendação n.º 116, em que se preconizou a redução progressiva da duração normal do trabalho, de modo a fixar essa redução em quarenta horas por semana, sem diminuição do salário.

«A polícia de choque, desencadeia a sua fúria sobre os trabalhadores indefesos, alguns dos quais (mulheres e homens), já bastante idosos, são apanhados naquela ratoeira e espancados e mordidos pela fúria assassina daquela polícia e dos cães. Os trabalhadores fogem em todas as direcções. Alguns caem e são pisados pelos outros. (…) As mulheres e os mais velhos são as principais vítimas. (…) diversos homens e mulheres são igualmente espancados feridos e mordidos com bastante gravidade. (…) A concentração transformara-se numa autêntica carnificina.» A 22 de Maio de 1974 os trabalhadores do Comércio do Distrito de Lisboa, depois de várias greves e manifestações, conseguem a assinatura da semana de 44 horas durante todo o ano, com encerramento aos sábados às 13 horas.

Em Abril nasce o Sol para todos os trabalhadores. Depois da revolução consagram-se os limites máximos de horário do trabalho para todos os sectores, os direitos assumem a condição de direitos fundamentais. A Constituição da República Portuguesa, lei máxima, determina a contratação colectiva como direito fundamental dos trabalhadores, diz que todos têm o direito ao repouso, ao lazer, e que o trabalho tem que se adaptar à pessoa, não o contrário.

Cedo se apressaram os que queriam partir espinhas à luta organizada dos trabalhadores. Destruindo vínculos permanentes com a permissão da contratação a prazo para satisfação de necessidades permanentes, pela mão de Mário Soares e os famigerados (falsos) recibos verdes que se lhe seguiram. Com a tentativa derrotada pela luta dos trabalhadores de que trabalho efectivo fosse apenas aquele que se está a trabalhar e não todo o tempo que o trabalhador está disponível para o seu patrão. Avança a direita com o seu Código do Trabalho em 2003, prossegue o ataque em 2009, os vários ataques entre 2012 e 2013 e agora, em 2014 a famigerada Lei do Trabalho em Funções Públicas. Mas nas ruas os trabalhadores têm atrasado e derrotado o processo de aniquilação dos seus direitos. A lutar pelo seu tempo. Pelo direito a ter a sua vida.

«Mas o que é um dia de trabalho? É de qualquer modo menos do que um dia de vida natural. Em quanto? O capitalista tem a sua própria opinião… o tempo durante o qual o operário trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho por ele comprada. Se o operário consome o seu tempo disponível para si próprio está a roubar o capitalista.

O capitalista faz então apelo à lei da troca de mercadorias. Ele, como qualquer outro comprador, procura obter o maior proveito possível do valor de uso da sua mercadoria. De repente, porém, eleva-se a voz do operário, que estava emudecida na tempestade e ímpeto do processo de produção:

A mercadoria que te vendi distingue-se da outra chusma de mercadorias pelo facto de o seu uso criar valor, e maior valor do que ela própria custa. Foi esta a razão porque tu a compraste. O que, do teu lado, aparece como valorização de capital é, do meu lado, dispêndio em excesso de força de trabalho… Constantemente me pregas o evangelho da “poupança” e “abstinência”. Muito bem! Eu quero, qual um ecónomo razoável e poupado, economizar o meu único haver, a força de trabalho, e conter-me de qualquer louca dissipação da mesma.”

«A criação de um dia de trabalho normal é, pois, o produto de uma guerra civil de longa duração, mais ou menos dissimulada, entre a classe capitalista e a classe operária… Para «protecção contra a serpente dos seus tormentos, os operários têm de juntar as suas cabeças e, como classe, impor uma lei de Estado, um impedimento social superpoderoso que os impeça a eles próprios de, por contrato de livre vontade com o capital, se venderem a si e à sua descendência até à escravatura e à morte.»

*Todas as citações retiradas de «O Capital» de Karl Marx
** Artigo originariamente publicado no 5 Dias, a convite de um dos escribas a propósito da meia hora gratuita por dia, derrotada pelos trabalhadores, actualizado com os contributos de um leitor assíduo deste Manifesto 74, o «De», a quem agradeço todas as referências ao texto original, de 2012.