Durante a noite, recebi a notícia da morte do comandante Iván Márquez. Entornei um pouco de rum num copo e bebi-o de um trago ao som de Julian Conrado. Lembrei-me daquela manhã em que os guerrilheiros se riram comigo. “Que raio de narcoguerrilha é esta sem álcool nem drogas?”
“Periodista, nosotros no producimos drogas. Cobramos impuestos a los que las producen. Aquí es prohibido consumir drogas y solo se puede tomar alcohol en celebraciones especiales”. A verdade é que não toquei numa gota de álcool naquele mês, em 2017, quando estive escondido com as FARC nas encostas da Sierra del Perijá. O processo de paz já tinha começado mas os principais comandantes diziam-me que era proibido o acesso permanente de jornalistas dentro dos acampamentos. Então, meteram-me no coração daquela cidade de ‘cambuches’, como chamavam às construções artesanais de barracas de madeira e tela, onde dormiam os guerrilheiros. Eu dormia numa tenda com um camuflado militar e todas as manhãs, sem falta, às cinco, um combatente, geralmente, o que estava de turno de guarda, ia de cambuche em cambuche simulando o chilrear de um pássaro para nos acordar a todos.
Depois do café, todas as mulheres e homens faziam exercícios matinais e recebiam as ordens do dia. Muitos iam buscar lenha, outros iam abrir latrinas, havia quem tivesse de cozinhar. Eu vivia ali como um hóspede que não faz nada em casa. Observava. Havia outros civis que eram membros clandestinos da guerrilha. Durante semanas, conversei ociosamente com um economista, professor universitário, muito interessado no funcionamento do sistema capitalista na Europa. Outro civil, um informático, ajudou-me a encriptar todas as minhas fotografias e vídeos para o caso de a polícia colombiana querer ver o meu portátil à saída do país. “Foram os bascos que nos forneceram esta tecnologia”.
Eu sentava-me de manhã ao lado do Yesid enquanto limpava a kalashnikov com uma escova de dentes e ele contava-me como teve de fugir com 12 anos dos paramilitares. As FARC ensinaram-no a ler e a escrever. E, anos mais tarde, a disparar. A tragédia repetia-se de história em história. Filhos de camponeses miseráveis que encontraram na guerrilha uma forma de sobreviver e de lutar, segundo eles, por uma vida melhor.
Com o Jaime, falava de ska e punk. Quando parti, ofereceu-me a sua agenda. Um humilde ‘recuerdo’ que me podia ter dado problemas, já que descobri mais tarde que tinha apontado a fórmula da pólvora e outras receitas explosivas no caderno. O Martin pediu-me que fizesse alguns takes para um videoclip que estava a fazer para a sua nova canção e, de repente, vi-me a dirigir vários guerrilheiros armados por entre a folhagem verde para conseguir as melhores imagens.
Em geral, dedicavam as horas livres ao mais bonito que a vida tem. Liam poesia, escreviam teatro, estudavam. Muito longe da imagem que se construiu na Europa das FARC, aquelas mulheres e homens não passavam os dias a processar coca ou a sequestrar pessoas. A maioria deles era filha de agricultores humildes, muitos destes produtores da folha de coca por força da vida porque era a única forma de alimentarem a família. Era justamente aos traficantes que depois enviavam droga para envenenar os jovens dos Estados Unidos e da Europa que a guerrilha cobrava impostos.
Muitas vezes, nas minhas caminhadas pelo acampamento, passava pela mesa dos comandantes. Era ali que se juntavam em reuniões intermináveis. Eu estava à guarda do comandante Alírio Córdoba, que às vezes me cantava algum vallenato, da sua companheira e do Yesid, um dos melhores atiradores e um dos integrantes da Cadena Radial Bolivariana, a rádio clandestina das FARC. Tive a oportunidade de conhecer outros dois históricos, membros da direcção máxima da guerrilha, o comandante Joaquín Gómez, que tinha estudado engenharia agrícola na União Soviética, e o comandante Bertulfo Álvarez.
Por aqueles dias, esperava uma possível visita de outros dois comandantes históricos que estavam fora nos diálogos de paz. Um deles era Jesús Santrich. Entrevistei-o anos mais tarde quando abandonou os acordos de paz depois de ter sido encarcerado a meio de uma montagem dos serviços secretos colombianos para o incriminar por tráfico de droga. Já de volta às montanhas, depois de ter fundado as FARC – Segunda Marquetalia, explicou-me as razões que o levaram a voltar às armas. Era uma personagem quase mítica na guerrilha. Quase cego, dedicava-se a escrever poesia e a pintar. Foi abatido na fronteira com a Venezuela por um comando das forças especiais colombianas.
Outro dos homens que eu esperava entrevistar era Iván Márquez. Este comandante tinha sido o mais votado no último congresso da guerrilha, mais do que o próprio líder das FARC, muito contestado pelas suas posições moderadas. Mais tarde, em solidariedade com Jesús Santrich, recusou tomar posse como deputado no parlamento colombiano, e decidiu regressar à luta armada como líder das FARC – Segunda Marquetalia. Tinha estudado direito na União Soviética e era um dos principais ideólogos da organização. Há um ano, um grupo de mercenários pago pelo Estado colombiano localizou-o e atacou-o. Gravemente ferido, resistiu na Venezuela durante um ano. Morreu ontem.
Provavelmente, é um capítulo que se fecha na história da Colômbia, mas nada vai mudar enquanto não se resolver de vez com aquilo que gerou este conflito de mais de meio século. Enquanto subsistir a miséria que leva tantos jovens a apostar na luta armada para viver do tráfico com os paramilitares ou para lutar por um país diferente com os guerrilheiros, a guerra vai continuar. A paz é, por isso, uma bandeira que se deve manter bem alta sem esquecer que se a violência é estrutural, a paz deve obedecer também a mudanças estruturais na sociedade colombiana. Para que mais nenhum jovem tenha de abraçar a violência, a justiça social é um factor determinante.