Uma chamada à consciência global

Internacional

A luta por ambiente ecologicamente equilibrado e sadio tem ganhado, ao longo dos últimos anos, especial atenção por parte da população e tem reunido esforços redobrados por parte de vários setores da sociedade. Porém, quando nos deparamos com a retórica ambientalista, geralmente, intrinsecamente liberal, vem muitas vezes atrelado um discurso pacifista altamente enviesado, classista e até neocolonialista. Tal é visível no que diz respeito à postura que assumem perante os conflitos globais, num dilema entre “guerra boa” e “guerra má” e, por outro lado, num paradoxo de condenação dos países menos desenvolvidos que procurem trilhar o seu caminho de desenvolvimento, quando o norte global nunca foi impedido de cometer erros pelos quais ainda hoje andamos a pagar a fatura.

A guerra é um fenómeno devastador que causa danos irreparáveis não apenas às vidas humanas, mas também ao ambiente que nos cerca. Ao longo da história, conflitos armados têm deixado um rasto de destruição, morte e impactes negativos nos ecossistemas global, local e regional e têm servido, no último século, como balão de oxigénio de um sistema económico que é altamente explorador do trabalho e dos recursos, e que está em constante definhamento.

A exploração desenfreada dos recursos naturais durante os períodos de guerra é uma consequência direta da lógica capitalista de acumulação de capital. A procura por recursos estratégicos como petróleo, minerais, terras férteis e água é impulsionada pela necessidade de garantir a dominação económica, política e ideológica das potências imperialistas sobre um sul global. Esta necessidade resulta na destruição de ecossistemas, desmatamento, poluição e contaminação de rios e solos, com impactes de longo prazo na biodiversidade e na saúde humana. Num mundo em que os recursos essenciais à manutenção da produtividade elevada e ao estilo de vida consumista do bloco capitalista são cada vez mais escassos, as guerras, convencionais ou económicas; as ações de desestabilização e os golpes de estado são ferramentas essenciais para a garantia da hegemonia e da acumulação de riqueza. A verdade é que, se observarmos atentamente, o principal fornecedor de matérias-primas críticas é a China, que, por sua vez, é considerada a grande inimiga económica do bloco ocidental. Uma boa parte dos conflitos mundiais poderiam ser explicados analisando as reservas de matérias raras, de petróleo, água, ou terras férteis; as necessidades dos EUA e da União Europeia e a disponibilidade de recursos em países não alinhados com a Aliança Atlântica.

O acesso a recursos naturais – ou a falta deste – pode ser em si o gatilho para a eclosão de conflitos. Tanto na República Democrática do Congo como no Haiti, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente concluiu que danos ambientais foram uma das principais causas de instabilidade política e conflito. Estima-se que, durante a década de 1990, aproximadamente 5 milhões de pessoas foram mortas em conflitos armados relacionados com a exploração de recursos naturais, e que um quarto dos 50 conflitos armados ativos em 2001 tinham sido amplamente “potenciados” pela escassez destes, sendo exemplos os conflitos no Kuwait, na Serra Leoa, na República Democrática do Congo e na Libéria, onde os interesses das grandes potências imperialistas estão também em jogo.

Distribuição global de matérias-primas críticas em termos de exportações. (Fonte: “European Commission, Study on the EU’s list of Critical Raw Materials – Final Report (2020))

A degradação ambiental causada pela guerra é agravada pela influência do clima, que atua como um catalisador, alterando drasticamente ciclos naturais, intensificando a ocorrência de fenómenos extremos e ciclos de degradação e conflito. A verdade é que regiões atingidas por conflitos armados enfrentam desafios adicionais visto que são, geralmente, menos resilientes aos efeitos das alterações climáticas, exacerbando os danos ambientais e os impactes na vida das comunidades locais.

Um exemplo vívido desta interação entre a guerra e as alterações climáticas é a região de Darfur, onde foi registada uma diminuição considerável e a longo prazo na precipitação pluviométrica. Este declínio nas chuvas tem impactes evidentes na qualidade dos pastos e na disponibilidade de recursos naturais. Além disso, os modelos de previsão das alterações climáticas indicam que áreas próximas ao Sahara, como o Norte de Kordofan, estão sujeitas a um aumento significativo nas temperaturas médias anuais até 2030 e 2060, juntamente com um aumento considerável de taxas de evapotranspiração. Estas alterações climáticas adversas têm um efeito devastador na agricultura, com estimativas de queda de até 70% na produção de colheitas. Como resultado, o deserto continua a sua expansão em direção ao sul, deslocando-se cada vez mais e afetando os ecossistemas frágeis da região.

Por outro lado, na década de 90, a Guerra do Golfo e as experiências do Kosovo demonstraram as capacidades ambientalmente destrutivas das armas convencionais, ficando claros os efeitos destrutivos da guerra e os seus impactes na vida humana e sua expressão.

Os impactes ambientais da guerra podem ser compreendidos ao examinarmos a magnitude e a duração dos efeitos; os ecossistemas envolvidos em localizações geográficas específicas; o uso de sistemas de armas individuais; os resultados de processos de produção específicos e os efeitos cumulativos combinados de diversas intervenções militares. Sob esta perspectiva, existem algumas atividades suscetíveis de causar impactes nefastos no ambiente de forma prolongada e abrangente, com consequências significativas para os seres humanos: a produção e teste de armas nucleares, bombardeamentos aéreos e navais, dispersão e persistência de minas terrestres e munições enterradas, e o uso ou armazenamento de toxinas e resíduos militares.

Relativamente às armas nucleares, foram libertadas quantidades incalculáveis de radiação na primeira metade do século XX, fruto dos testes de produção. Incluem-se nestes testes 423 testes atmosféricos 1400 testes no subsolo, perfazendo muitos milhões de curies. Exemplo dos desastres atómicos é o bombardeamento de Hiroshima e Nagasaki, causador de danos que se estendem até aos dias de hoje, mas também a utilização de urânio empobrecido nas guerras da Jugoslávia e da Ucrânia. Por outro lado, ao longo da invasão do Iraque em 2003, estima-se que as forças dos Estados Unidos e do Reino Unido tenham lançado cerca de 13.000 bombas de fragmentação e utilizado mais de 1,9 toneladas de urânio empobrecido. Estas ações resultaram em danos ambientais de grande magnitude, cuja extensão e impacto só seriam plenamente compreendidos após um longo período de tempo.

Por outro lado, os bombardeamentos de vários tipos levaram à destruição de cidades inteiras, de florestas e ecossistemas. Exemplos disso são os bombardeamentos americanos nas guerras do Vietname, Laos e Camboja, que resultaram em cerca de 17 milhões de refugiados e onde foram utilizadas bombas de napalm e herbicidas, mas também na guerra da Coreia, que é até hoje das áreas do planeta mais fustigadas por bombardeamentos em período de guerra. Ou ainda mais recentemente, na Líbia e na Síria, na Palestina – onde Israel promove crimes contra a população palestina nos colonatos, desviando cursos de água e vedando o seu acesso à agua – e no Iémen, onde são arrasados serviços de ecossistemas vitais, que dificilmente permitirão àquelas populações prosperar, no futuro.

A guerra leva ao fluxo forçado de populações, criando refugiados de guerra que sofrem com a escassez de recursos naturais e a deterioração das condições de vida. Esta migração em massa é resultado não apenas da violência direta dos conflitos, mas também da destruição dos meios de subsistência e da expropriação das terras. A concentração de poder e riqueza nas mãos de uma elite, como é típico do sistema capitalista, leva à exploração insustentável dos recursos naturais e à marginalização das classes mais vulneráveis, tornando incomportáveis a sua sobrevivência e resiliência a um meio ambiente em transformação rápida e imprevisível.

Distribuição global de minas antipessoais. (Fonte: Aardvark group)

Estimam-se que existam cerca de 100 milhões de minas ativas no mundo inteiro. As minas terrestres aceleram danos ambientais por via de um dos quatro mecanismos: o medo das minas nega o acesso a recursos naturais abundantes e terras aráveis; as populações são forçadas a deslocar-se, preferencialmente, para ambientes marginais e frágeis, evitando os campos minados; essa migração acelera a redução da diversidade biológica e as explosões de minas terrestres interrompem processos essenciais do solo e da água.

Por outro lado, o Departamento de Defesa norte-americano é a instituição mundial maior consumidora de petróleo e, por consequência, o maior poluidor – são 1.2 mil milhões de toneladas métricas de gases com efeito estufa desde 2001. Posto em perspectiva, é o equivalente às emissões de 257 milhões de carros (muito mais do que o número de carros existentes nos EUA).

As guerras no Iraque, no Afeganistão, na Síria e em muitos outros pontos do mundo levaram a cabo uma política externa de submissão a este império e de alimentação da sua indústria de armamento e de guerra. Os seus atos levaram à destruição de milhares de vidas humanas nas últimas décadas, mortes, fluxos populacionais, refugiados; à destruição de importantes ecossistemas como florestas, zonas húmidas e empobrecimento de solos, recursos naturais e perdas de biodiversidade irreparáveis.

Os recursos hídricos das zonas de guerra são contaminados por combustíveis fósseis, tornando-os inacessíveis às populações que habitam zonas que outrora foram campos de batalha. No Iraque e no Kuwait, por exemplo, médicos e investigadores têm vindo a alertar para os impactes da guerra (no Kuwait) devido à produção de poeiras e à inalação de matéria particulada tóxica.

Procuramos estratégias internacionais e regionais de combate às alterações climáticas, de descarbonização dos setores económicos e de reversão da destruição de ecossistemas vitais, porém, esquecemo-nos constantemente de que o equilíbrio entre a Humanidade e o meio ambiente não será nunca possível sem o reconhecimento dos impactes humanos e ambientais da guerra. Continua a ser trilhado um caminho pelo capital, de imposição do ónus das questões ambientais no individuo (de preferência trabalhador), ao invés de colocar a responsabilidade nas grandes empresas que ganham com a nossa exploração, com as guerras, as invasões e os saques de recursos.

A luta pela paz é inerentemente uma luta por um meio ambiente capaz e resiliente, que permita a proliferação de uma grande maioria das formas de vida de forma equilibrada, que permita o estabelecimento de sociedades justas e igualitárias, onde não exista exploração do homem pelo homem, nem a exploração desenfreada dos recursos naturais. Pois só fora de uma lógica mercantil do ambiente e de um sistema que ambiciona crescer infinitamente será possível construir um mundo de paz, no qual os povos detenham a soberania, e dominem as relações de amizade e mútuo respeito.