Os bois e os nomes

Internacional

As cenas vistas em Brasília, depois de uma marcha de fascistas devidamente enquadrada pelas autoridades policiais, são o resultado da ascensão e reorganização da extrema-direita, a sua normalização, e falsas equivalências entre extrema-direita e tudo o que não seja extrema-direita. Convém recordar que Lula não é comunista, não é um radical de esquerda e será no máximo, e com muito boa vontade, um social-democrata progressista. Mas é um antifascista pelo que, de acordo com a lógica dominante atual, é um radical tão mau como os fascistas, mesmo tendo gente de direita no governo recém-nomeado. O sucedido merece um olhar, ainda que breve, sobre as várias dimensões da questão brasileira, que se estende a outros países um pouco por todo o mundo.

Polarização, o risco
Dizer que há uma polarização política no Brasil serve para alimentar o discurso das falsas equivalências entre esquerda e extrema-direita. Infelizmente para o Brasil, não é essa polarização que existe, é entre democratas e fascistas. Por isso, não é correto, informativo ou útil usar a polarização no sentido em que tem sido feito. Há, sim, uma polarização entre defensores de dois sistemas políticos: os defensores da democracia liberal e os fascistas. Não há nem nunca houve no Brasil, desde o primeiro mandato de Lula, qualquer coisa que seja sequer parecida com extrema-esquerda, a menos que a análise tenha derivado tanto para a direita que basta aumentar os níveis de educação, diminuir o índice de fome e dar um mínimo de dignidade a um ser humano já seja considerado extrema-esquerda. Talvez seja isto. Mas importa repetir: não há qualquer polarização entre esquerda e direita pela luta do poder no Brasil, há uma polarização entre democratas, que nesta fase histórica se agruparam em torno de Lula, e entre fascistas, que se vêem representados em Bolsonaro.

A conciliação
Ontem, o mito da conciliação voltou ontem a ser agitado por terras lusas, quando várias pessoas, dos “liberais” a gente ligada ao PS, viram na intervenção de Lula algum exagero, porque deveria ser mais comedido quando chamou fascistas a fascistas, neonazis a neonazis e genocida a um genocida. Parece que foi o tom, que o Brasil não precisava, diziam, a partir da poltrona. Note-se que não estamos sequer a falar da conciliação entre classes, estamos já num plano inferior, em que a conciliação deve ser, para estas pessoas, entre democratas e fascistas. Recentemente, uma jornalista do Expresso viralizou no Twitter por ter dito que matar nazis era um crime, tendo a frase chegado ao Brasil. Milhares de brasileiros que sofreram com as políticas de extrema-direita de Bolsonaro discordaram da jornalista. Também no Twitter, um jornalista da Visão veio, horas antes do início da invasão – realço -, usou o argumento bolorento, cansado e mentiroso de que “agora é tudo fascista”. Não é tudo fascista. É fascista o que é fascista, por muito que um burguês assustado ache que todos os que não concordem com ele são comunistas a soldo dos unicórnios imaginários que vivem na sua cabeça. E devemos mesmo chamar fascista a quem é fascista, isolá-lo e combatê-lo sem preconceitos que alguns querem colar. Não é por eu olhar para um cavalo e chamar-lhe boi que ele vai deixar de ser um cavalo. Esta visão de quem vive no privilégio europeu, particularmente na antiga capital do império português e, dentro dela, numa bolha político-mediática, só vai perceber o que está a acontecer quando o monstro lhe cair no colo com estrondo.

Do comentário ao jornalismo
É certo que, nos dias de hoje, a extrema-direita comunica entre si através de redes sociais e canais de mensagens. Mas é desonesto dizer que foi aí que o movimento ganhou força nos últimos anos. O processo de normalização da extrema-direita como legítima começou nos media e nas instituições políticas dominadas pelo “centro”, ou direita envergonhada, e direita. As capas das revistas Veja e Isto É, por exemplo, alimentaram a campanha contra Lula e Dilma e promoveram acusações infundadas que nunca foram provadas. Nem desmentidas pelas revistas. Em Portugal, os media vão trilhando o seu caminho de normalização da extrema-direita. A invasão russa da Ucrânia transformou nazis em lutadores pela liberdade, por parte de alguns comentadores e jornalistas, quer estejam em trabalho ou nos seus canais pessoais. Deixou de acontecer aquilo que de tanto se falou durante as campanhas legislativas e presidenciais. Se na altura se dizia que “estando dez pessoas à mesa sentadas com um fascista passaria a haver 11 fascistas”, passámos para o “são nazis, mas são os nossos nazis”. Há uma parte da classe jornalística que não percebe que, aqui como lá, quando já não forem úteis, passarão a ser tão inimigos como todos os outros, sendo substituídos pelas redes de desinformação que alimentaram.

O complexo eurocêntrico
Durante os comentários aos acontecimentos de ontem, um comentador, não me recordo quem, fazia um paralelo entre os fascistas brasileiros e os fascistas italianos e franceses. Para ele, o fascismo de Bolsonaro é mais grave porque uma neofascista ganhou as eleições em Itália e as instituições mantiveram o seu funcionamento. O mesmo com Le Pen, que as perdeu. Talvez isso diga mais sobre o estado das instituições das democracias liberais europeias do que sobre o fascismo. Mas está subjacente aqui uma análise que já não se usa nem na análise política, nem nas relações internacionais. Os fascismos europeus só não fizeram, ainda, o mesmo que fizeram no Brasil, porque as condições objetivas não estão reunidas. É ingénuo, perigoso e, sobretudo, preconceituoso achar que os fascismos europeus são mais civilizados do que outros. São todos a mesma coisa, tenham para tal reunido as condições necessárias.

O associativismo hereditário
Ainda nos comentadores, ontem, SIC e RTP, pelo menos, chamaram para comentar a invasão fascista nada menos do que dois fascistas, pai e filho, de apelido Amaral Pessoa. Tiveram tempo de antena para despejar propaganda bolsonarista, ameaçando com novos atos criminosos e continuando a desenvolver a história de uma suposta fraude, mais do que desmentida. Não há qualquer direito ao contraditório quando está mais do que provado que o que o convidado está a dizer é mentira. De notar que estas mesmas duas pessoas estiveram também em vários canais a comentar as últimas eleições brasileiras, pelo que o tom e os argumentos eram já conhecidos. O direito ao contraditório – que só existe quando dá jeito, note-se, em outros casos está legitimado pelos critérios editoriais – não existe quando está em causa a verdade. Mas nem isso fez com que a estação pública e o canal de Balsemão dessem palco a estas figuras.

Portas & Portas
Em 2018, Paulo Portas dizia que não via nada de “eticamente reprovável em Bolsonaro”, referindo-se a alguém que, já em 1987, tinha ameaçado explodir quartéis. Estávamos a falar de uma pessoa que, na votação da destituição de Dilma, elogiou no coronel Ustra, um torturador da polícia política brasileira. Recorde-se que Dilma foi uma das mulheres torturadas durante a ditadura militar. Ontem, Portas falou, obviamente, sobre o assunto, na TVI, onde tem o seu espaço semanal de homilia. Estes espaços de comentário são, supostamente, moderados por um jornalista mas, aqui, o contraditório já não se aplica. O jornalista foi incapaz de confrontar o senador Portas com as afirmações que fez. E esta falta de escrutínio ajuda a limpar a imagem daqueles que, de forma envergonhada, se vêem obrigados, por agora, a fazer de conta que condenam aquilo que admiram.

Polícia e criminosos
O Brasil é um estado onde o crime a polícia andam de mãos dadas, como ficou ontem provado. Foram polícias que acompanharam os fascistas, foram polícias que não atuaram como atuariam numa favela. Porque na favela estão os negros e  pobres, por isso, os criminosos; naquela manifestação estavam fascistas brancos, de classe média e alta ou pagos por ela, pelo que não há crime que lhes toque. Numa favela, em lugar de selfies e vídeos, os polícias tinham usado munição real e, vítimas inocentes houvesse, seriam danos colaterais, vítimas de balas perdidas, com certeza disparada pelos bandidos sem farda. E Lula também foi incapaz de resolver isto enquanto foi presidente.

As eleições e a rua
Fica demonstrado que não é com eleições que se combatem fascistas. Um democrata ganhou as eleições e um fascista não aceita os resultados. Pode ser que sirva de lição para aquelas esquerdas que, nas duas últimas eleições em Portugal, colocavam como objetivo garantir a derrota da extrema-direita ficando à frente dela, centrando-se no candidato fascista. Não ficaram e, com isso, passou a ideia de que o fascista ganhou. Não há de ser nas instituições burguesas, que permitem a sua ascensão, que o fascismo será derrotado. Será nas ruas, com a luta popular dos trabalhadores organizados no seu partido de classe, dos sindicatos, dos movimentos sociais e associações, bairro a bairro, casa a casa, um a um, que o fascismo será derrotado. Mas, perdendo as ruas, a esquerda perde o único espaço que tem para passar a sua mensagem, que não entra nos órgãos de comunicação social. No Brasil como cá, cabe ao povo de esquerda sair às ruas e confrontar o que tiver de ser confrontado, com as armas e recursos que temos, com a certeza de que a vitória final será nossa. Nem um passo atrás. Fogo nos fascistas!