Na semana passada, PS, PSD, IL, BE, PAN e Livre votaram a favor de um Projeto de Resolução com vista ao reconhecimento da Palestina. Ou nem por isso. A fidelidade canina de Rui Tavares à UE e a uma esquerda não-marxista, seja isso o que for, significou um recuo naquilo que deveria ser o reconhecimento imediato do Estado da Palestina pelo Parlamento. A embaixada israelita em Portugal, com quem Rui Tavares participou numa photo-op não há muitos dias, terá ficado grata.
Se há coisa com que os árabes sabem que não podem contar, é com a solidariedade de Rui Tavares. Vimos isso em relação à Líbia, no Parlamento Europeu, quando o agora líder do Livre e então eurodeputado do BE deu a mão a Durão Barroso, à então Secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, e a todos os poderes europeus para decretar uma no-fly zone na Líbia, que permitiu a intervenção da NATO naquele país. A par disso, a resolução reconhecia o Conselho Nacional de Transição como único interlocutor dos poderes ocidentais na Líbia. É aquele fascínio do radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista pelas revoluções à distância. O desastre da destruição da Líbia abriria as portas daquele Estado à Al-Qaeda e, mais tarde, ao Daesh. Os arsenais do exército líbio viriam a cair nas mãos de diversas organizações terroristas.
Palestina, mas não muito
O resto da história já é tragicamente conhecido. Rui Tavares, se calhar genuinamente, se calhar ingenuamente, tem uma fé cega na União Europeia, mesmo numa altura em que esta se reduziu à irrelevância no plano internacional, após a guerra na Ucrânia demonstrar que é uma extensão dos interesses Washington. É o Donaltim da polícia internacional, com a mão dos EUA a decidir os gestos e a fala. Então, o que tem de tão extraordinária a resolução do Livre, que a fez ser aprovada por alguns dos setores mais extremados do sionismo presente na Assembleia da República?
As fronteiras aceites mutuamente
Na proposta, podemos ler que Portugal deverá ter “um posicionamento que leve ao reconhecimento efetivo do Estado da Palestina, viável e sustentável, na base de uma repartição de território justa e mutuamente aceite“. Ou seja, a ONU e as suas resoluções passaram para segundo plano, desde que o Estado de Israel aceite aquilo que os nossos deputados entendem que deve ser aceite. Ficamos sem perceber qual é o significado de “justa” para os partidos que votaram favoravelmente a resolução. Se é esmagar a população de Gaza, como está a acontecer, até que uma autoridade política palestiniana se manifeste a favor, por exemplo, da anexação do norte da Faixa por parte de Israel, como forma de travar o genocídio? Deste modo, haverá uma “repartição justa e mutuamente aceite“. Ainda que à força. O final da I Guerra Mundial deu-nos vários exemplos de repartições justas e mutuamente aceites, nomeadamente, por parte dos derrotados, que remédio. Esperar que um Estado apartheid como o de Israel, particularmente com o governo atual, reconheça o que quer que seja que não o extermínio palestiniano, é próprio de quem das duas, uma: aprova a resolução para que tudo fique na mesma; aprova a resolução para dar carta branca a Israel.
Os terroristas
O eurocentrismo de Rui Tavares e dos restantes partidos que aprovaram o documento salta à vista quando se refere “excluindo qualquer organização terrorista como representante do povo Palestiniano”. Quem define o que é uma organização terrorista? Será Rui Tavares? Será a UE? a NATO? Os EUA? O deslumbre de Rui Tavares é tal que nem isso refere no documento. Daí que PSD e IL tenham acorrido a votar a favor do partido do meio da esquerda. Pelos critérios, ou falta deles, nada inocentes da Resolução, Mandela, por exemplo, nunca poderia ter sido representante do povo da África do Sul. Era considerado terrorista pelos EUA. Nas ex-colónias, Rui Tavares também não teria no MPLA, no PAIGC, ou na FRELIMO interlocutores para a paz, porque eram considerados movimentos terroristas. Vejamos que nem a OLP escapa, que também foi considerada terrorista pelos EUA, entre 1987 e 1993. No fundo, Rui Tavares quer escolher quem os palestinianos escolhem para representá-los. É aquela mania que alguns europeus não conseguem reprimir, por mais casacos progressistas que vistam, que devemos ser nós a decidir quem cada povo escolhe para seu representante. É o intervencionismo que lhes corre nas veias.
As resoluções especiais da ONU
No mesmo documento, recomenda-se “ao Governo que defenda o respeito pelas Resoluções das Nações Unidas relativas ao conflito israelo-palestiniano, especialmente as que proíbem a construção de novos colonatos“. O documento cria, assim, uma hierarquia nas resoluções da ONU. Umas devem ser observadas especialmente, ao passo que outras podem ser descuradas e, quem sabe, esquecidas, como vimos logo no primeiro ponto. Refira-se que, só em 2023, a Assembleia Geral da ONU aprovou 14 resoluções a condenar Israel. Mas, lá está, estas não têm o estatuto de especiais.
100 dias
Passam 100 dias desde o início do massacre israelita em Gaza. Mais de 1% da população de Gaza foi assassinada. Falta saber quantos cadáveres estarão debaixo dos escombros do que Israel tem vindo a terraplanar. Da direita, da esquerda não-marxista e de alguma que se diz marxista, os palestinianos já sabem com o que podem contar: palavras redondas que não aborreçam o projeto colonialista de Israel. À esquerda, cá estaremos para não deixar cair no esquecimento o genocídio e limpeza étnica em curso, para manifestar todo o apoio à resistência palestiniana e para continuar a lutar pelo reconhecimento incondicional do Estado da Palestina, com ou sem UE.
“O que eu sei é que a história do mundo é desde sempre a história dos fracos que lutam contra os fortes. Dos fracos, que têm uma causa justa, contra os fortes, que usam a sua força para explorar os fracos”.
Ghassan Kanafani, representante da Frente Popular de Libertação da Palestina, em entrevista, em 1970.
16 Janeiro, 2024 às
Melhor era difícil. Claro tanto no que respeita á defesa da Palestina e o genocídio praticado contra o seu povo, como em relação à natureza cínica e cobarde de seres como R. Tavares, oportunistas e cúmplices uteis dos crimes praticados. Parabéns!
recentemente também tive a oportunidade de escrever sobre a Palestina no Abril Abril.
Continuem o bom trabalho. Abraço