Anatomia de um processo revolucionário: Greve, de Sergei Eisenstein

Nacional

Em 1918, Sergei Eisenstein abandonou a escola para se alistar no Exército Vermelho. Mais tarde, é no cinema, entusiasmante arte por desbravar, que continua a combater aguerridamente pela construção do socialismo, após uma breve experiência no teatro agit-atracção, ramo experimental e eminentemente politizado. Greve (1925), a sua primeira longa-metragem, é bem mais do que um filme, tendo-se tornado, desde a sua estreia, num marco do cinema soviético que influenciaria os seus contemporâneos, como Dovzhenko ou Ermler, pois o conjunto de inovações técnicas que apresenta, por si só, encabeçavam, na sequência da Revolução de Outubro de 1917, uma nova revolução no que concerne às artes. Parte inaugural de uma série de filmes que reconstroem a luta atribulada dos trabalhadores, na Rússia pré-URSS, e cujo fio condutor é a urgência da ditadura do proletariado, Greve é uma colaboração entre o centro cultural Proletcult e os estúdios Goskino, que se encarregaram da sua distribuição. Embora não tenham chegado, em massa, ao público internacional, até às décadas de 50 e 60, Greve e as demais obras do cineasta despoletaram reformas várias na forma de fazer cinema, particularmente, na Europa. A sua descoberta simboliza um momento de viragem para o cinema de todo o mundo, que se sentou boquiaberto e tomando notas, absorvendo os seus contributos para o desenvolvimento da sétima arte. Hoje, nem Eisenstein está datado, nem a Greve é temática obsoleta.

Filho de um contexto de grandes transformações políticas, o cinema soviético da primeira metade do século XX, que encontra em Eisenstein um dos seus mestres, não só forja uma relação entre cinema e política como é, invariavelmente, político. A temática revolucionária é uma constante, mas é a montagem, verdadeira pedra basilar desta vanguarda artística em ascensão, que se ocupa da clareza da mensagem política. Se, na Rússia de Nicolau II, a actividade cinematográfica era reduzidíssima devido à I Guerra Mundial, no seguimento da Revolução de Outubro, foram nacionalizadas as artes, que, doravante, estariam militantemente ao serviço do regime socialista. Lenine reconhecia, no cinema, a notável eficácia na difusão de ideias e a capacidade de educar e mobilizar as massas. Este converte-se, desde os primeiros anos da URSS, numa ferramenta indispensável à propaganda institucional. Os anos 20 são o berço desse cinema ligado à realidade concreta da classe operária, que, por sua vez, se havia de tornar no herói colectivo das narrativas soviéticas. Um cinema de classe, baseado num complexo sistema de montagem. Em 1924, Eisenstein, juntamente com Kuleshov, cria a Associação dos Trabalhadores do Cinema Revolucionário, robustecendo o controlo ideológico sobre os processos criativos. Eis que, no ano seguinte, estreia Greve, e é para lá que iremos.

I

Tudo começa numa banalíssima fábrica russa, sem grande alvoroço, até que um trabalhador é acusado de roubar um metrónomo. Este está inocente, porém, é incapaz de o provar, não resistindo à tentação de acabar com a própria vida, enforcando-se, no local de trabalho, com um cinto. Deixa um bilhete aos colegas, reiterando a sua inocência. É o suicídio de um colega de trabalho, na sequência de uma acusação falsa, que leva os trabalhadores a virarem-se contra o patrão e, naturalmente, a aderirem à greve. Eisenstein começa por introduzir o gatilho que conduziu à luta e David Bordwell sintetiza, de forma astuta, a finalidade última do cineasta: traçar a anatomia de um processo político. Melhor dizendo, Greve – tal como O Couraçado Potemkine ou Outubro – é a anatomia de um processo revolucionário vencedor, que, na óptica deste cinema militante e alheio a floreados, deve ser replicado, em nome da justiça. No jornal Pravda, Mikhail Koltsov constatara que Greve era a primeira criação revolucionária do cinema soviético, ainda que outros o considerassem excêntrico.

O filme em apreço é, então, constituído por seis partes, representantes de seis diferentes fases da luta dos trabalhadores de uma fábrica, e evoca greves reais, que decorreram ao longo do ano de 1903, para exaltar este herói colectivo, esta vangurda operária. Cada uma destas fases constitui um elemento indissociável da anatomia revolucionária. Greve é composto por curtos planos – cada um tem, em média, 2,5 segundos – filmados por uma câmara estática, mas que se seguem, freneticamente, uns aos outros, numa combativa sequência de contrastes. A montagem é, portanto, o coração de Greve. O ritmo deste, como doutros filmes soviéticos, seus coetâneos, é acelerado, como acelerada é a história russa do início do século. A arte, segundo Eisenstein, obriga a um fim político e educativo, pelo que também exige um público não-passivo, imerso na intensidade das imagens, para que possa entranhar verdadeiramente a sua mensagem política. O público não deve ser poupado, deve ser bombardeado com sequências de imagens impactantes; a experiência da arte, pelo espectador, prevê o choque e deve estar na base da sua actividade revolucionária. O cinema de Eisenstein é pura agitação e propaganda e é, naturalmente, dialéctico. Se é de forma dialéctica que se relacionam todas as coisas, a dialéctica teria, enfim, de tomar o seu lugar no cinema. A função da montagem não é ligar, cronologicamente, um sem-número de planos, e tampouco é apresentar uma ideia através de uma série de planos colados. A montagem trata, sim, de apresentar uma ideia a partir da bruta colisão entre dois planos, independentes um do outro. Tese, antítese e síntese, ou, como diria João César Monteiro, “vem no Marx”.

Toda a cultura deve servir a emancipação dos trabalhadores, na teoria que acompanha a produção cinematográfica. O espectador activo é também aquele que transporta para a sua prática diária o que assimila diante do ecrã, onde o realismo socialista era política cultural e as constantes sobreposições na edição das imagens priorizam o impacto perceptivo, descartando, muitas vezes, a continuidade. A dialéctica entre planos não dá de bandeja, ao espectador, uma imagem completa, mas a experiência de completar uma imagem. Não havendo propriamente um enredo, Greve vive do poder das imagens e, ao não existir um protagonista sob a forma de uma personagem complexa, é sugerido o triunfo do colectivo sobre a individualidade. O protagonismo, em Greve, é dado à classe trabalhadora, composta por personagens tipo, com o objectivo de realçar a importância da unidade na acção das massas. Greve começa, aliás, com uma citação de Lenine, que remonta a 1907: sem organização, o proletariado não é nada; organizado, é tudo. Além da oposição entre planos, a cargo da montagem, surge uma narrativa pautada por uma lógica de classe contra classe, proletariado contra burguesia, instigando a inevitabilidade da luta. Não é preciso ir além do primeiro minuto do filme para provar a veracidade da afirmação anterior.

Após o mote de Lenine e o intertítulo que inaugura a primeira parte – Tudo está calmo na fábrica – vemos o fumo negro saindo da chaminé da fábrica e, imediatamente a seguir, o director da mesma, cuja aparência é alvo de sátira, como frequentemente o é a aparência dos grandes capitalistas. É gordo, veste fraque, faz caretas e usa uma cartola, que nem o boneco do Monopólio. Surge coçando o queixo, como quem planeia infernizar a vida a quem trabalha. Depois, o reboliço, o dia-a-dia agitado de dezenas de trabalhadores, constantemente correndo de um lado para o outro, ao passo que, no plano ulterior, ressurge a figura do patrão, rindo às gargalhadas, despreocupado. O burguês ri-se enquanto a classe operária produz a riqueza que lhe enche a barriga. Tudo isto em 11 segundos, tal é a velocidade da montagem e o condão de espelhar enormidades em 4 simples planos. É também aqui que surge um tipográfico Mas, que anuncia o desabrochar de um conflito. Esta cena não só é um exemplo paradigmático e inaugural do uso da montagem e/ou das técnicas de edição vanguardistas no que diz respeito à disseminação de uma mensagem política que prevalece na obra dos cineastas soviéticos no activo, nas décadas de 20 e 30, como sintetiza a essência temática – a luta de classes – dominante, neste período histórico-artístico, numa URSS em crescimento, entre planos quinquenais.

II

Embora Greve seja posterior ao auge do cinema das atracções, o qual Tom Gunning localiza entre 1906-07, este alberga ainda diversas características comuns. Invenção de finais do século XIX, o cinema coexiste, desde logo, com uma panóplia de inovações tecnológicas e um fascínio pela modernidade, acompanhado por uma febre de registar, através dos meios disponíveis, o que ela oferecia. A locomotiva, os transportes, as máquinas e as suas possibilidades são tema assíduo nos primórdios da sétima arte, devido ao encanto generalizado de que era alvo a sua aparição na vida urbana. Chegados aos anos 20, Eisenstein e os soviéticos convocaram, igualmente, a modernidade. O Homem da Câmara de Filmar (1929), de Dziga Vertov, o qual, ironicamente, para Eisenstein, não passava de uma manta de retalhos formalista e inconsequente, é um manifesto que bem ilustra esta tese. Retomando as atracções, é, aliás, com o legado do próprio Eisenstein em mente, adepto de um confronto exibicionista em detrimento da absorção diegética, que Gunning baptiza esta leva de produções cinematográficas.

O cenário mais recorrente em Greve é, nada mais, nada menos, do que uma fábrica, um grande complexo de maquinaria em constante movimento. Chave deste cinema das atracções é uma abordagem agressiva em prol da captação da atenção do espectador; a ruptura com o plano narrativo, dando primazia ao domínio de imagens que valham por si – o cinema não é tanto um veículo para contar histórias ou submergir nas mesmas, numa espécie de mundo alternativo, mas um espectáculo de surpresas e sobressaltos. O desenvolvimento de uma montagem de atracções, por Eisenstein, reinventa esta forma de fazer cinema. É, por conseguinte, reconhecida a existência das pessoas e do mundo fora dos filmes. Dois dos principais vectores para a solicitação directa da atenção do espectador, que convivem conscientemente com a exterioridade, são 1) o recurso à violência e à estimulação através do choque – veja-se a sequência da degolação de uma vaca, em Greve, ou as célebres escadas de Odessa, em O Couraçado Potemkine – e 2) o olhar penetrante das personagens, em direcção à câmara. Se, nas comédias, as personagens sorriem ou piscam o olho para a câmara ou, se, nas demonstrações de magia, os gestos e as vénias dos ilusionistas se dirigem, frontalmente, ao público, em Greve, as personagens – os operários – olham fixamente para a câmara, como quem finta o olhar do próprio espectador e, sobretudo, como quem o convoca para a luta.

Resultado, em si, de um processo revolucionário, bem como contemporâneo da chama modernista, Greve não se desmarca do seu contexto, nem é imune às tendências do cinema de então. Todavia, é a originalidade do seu criador que lhe dá brio; são as inovações que soma às fórmulas usadas pelos seus antecessores que importa distinguir. Ao contrário do que prega Andrew Tudor, que só é capaz de reconhecer o génio de Eisenstein após o devido levantamento de preconceitos anti-comunistas de trazer por casa – e que nada acrescentam à teoria do cinema –, o mesmo não é brilhante apesar do regime socialista, mas graças a ele. Se a montagem é o coração do cinema de Eisenstein, a dialéctica é o seu esqueleto. O choque, a surpresa e a provocação na abordagem, típicos do cinema das atracções, serviam, essencialmente, o deleite do espectador. No cinema revolucionário de Eisenstein, servem a sua agitação e visam o seu recrutamento. A temática, a montagem e os antagonismos de classe que ambas levantam do chão constituem a verdadeira anatomia de uma vanguarda comprometida com a transformação do mundo e o progresso, não só da arte, mas da sociedade.