Pode o passado mascarar-se de futuro?

Internacional

Uma vez, conheci um homem que viajou no tempo. Mergulhou na vertigem espacio-temporal que o catapultou dos anos 80 para o presente e encontrei-o numa das margens da ria de Bilbau. Entrou na máquina que o trouxe ao futuro ainda jovem e saiu com o rosto enrugado pelo tempo. Respondeu-me que era mentira. Que tinha vindo do futuro e que aterrara no passado. De uma cidade cinzenta e industrial onde a luta de classes era o motor da história, observava agora como se afogava a rebeldia nas mornas águas da cidadania responsável. Curioso, perguntei-lhe como havia viajado no tempo. Um dia, a polícia emboscou-o e metralhou-o. Moribundo, conseguiu sobreviver e viveu sequestrado durante três décadas nos cárceres espanhóis.

Mas às vezes, mesmo à deriva, o futuro acaba por dar à costa. Quando há força colectiva para organizar o porvir o horizonte pode transformar a cultura de um povo. Em 1968, quando as mulheres e os homens de Cabo Verde e Guiné-Bissau forjavam a independência sob a dura melodia das kalashnikov, na outra ponta do Atlântico os estivadores de Baltimore carregavam um navio com modernos instrumentos para alimentar a música electrónica. Submetido a terríveis condições atmosféricas, a tripulação perdeu o controlo da embarcação e dois meses depois de desaparecer dos radares marítimos o navio deu à costa da ilha de São Nicolau. Apesar da guerra, o PAIGC deu a ordem de distribuir os instrumentos eléctricos pelas populações das poucas localidades com electricidade e a embarcação fantasma acabaria por transformar a música cabo-verdiana.

Também há aquelas histórias de quem ficou preso na corda bamba entre o passado e o futuro. Depois de empreender uma fuga marítima, o mais famoso dos poetas turcos foi encontrado por um cargueiro romeno. Nazim Hikmet escapava da noite turca e procurava a via para Moscovo quando o capitão que levava na cabine um cartaz que exigia a libertação do mesmo Nazim Hikmet se dispunha a entregá-lo às autoridades turcas por não ter autorização para o recolher. Felizmente, o telégrafo cumpriu o seu desígnio e devolveu o futuro ao poeta comunista.

São tantas as metáforas que não se compreende como tropeçámos e caímos novamente no vazio do passado. No mesmo ano em que o azar levou o futuro musical a Cabo Verde, a poesia morria debaixo de uma calçada que já não cheira a Verão porque a madrugada se afogou na tormenta social-democrata em Paris. A força da razão ou a razão da força na derrota do futuro em Moscovo quando Gorbachev enterrou a União Soviética? O independentista basco que viajou do futuro veio de um mundo em que as relações laborais mais favoráveis serviam de muro ao passado. Neste compasso em que dançamos sozinhos e fazemos culto à individualidade, interpretamos a cidadania obediente como sinónimo de civilidade.

Vivemos em tempos em que o descomprometimento e a anti-política – que é também política – se encaixam perfeitamente na precariedade dos dias que correm apressados rumo ao passado. As relações sociais afundam-se no silêncio da mediocridade e da precariedade. Somos mais ecológicos porque somos mais limpos ou somos mais limpos porque nos foi imposto? Somos inimigos do ruído porque acreditamos no respeito pelo espaço do outro ou esse respeito não é mais do que fruto do medo? Somos mais livres e descontraídos nas nossas relações pessoais ou isso é afinal resultado das contradições capitalistas e não da emancipação sexual e emocional? É a mesma coisa ser-se moderno que ser-se progressista? Pode o passado mascarar-se de futuro?

3 Comments

  • Refer&ncia

    17 Julho, 2017 às

    Um texto interessante manchado por um pontapé na gramática. Quando culpam um careca pelo desaparecimento da URSS há qualquer coisa que não estão a perceber. Ou aquilo era um sistema de produção e um careca não destrói um sistema de produção (um sp só é destruído pelo acréscimo de produtividade do que o destrói) ou aquilo era uma oligarquia com fraca desigualdade e uma vez morto o Ditador o resto foi estertor. Não digo que não tenha sido uma experiência única, mas da próxima vez temos de (saber) fazer melhor e culpar um careca não ajuda a identificar os erros. Decidam-se 😉

    • Nunes

      17 Julho, 2017 às

      Creio que foi uma boa experiência e até sabemos que o processo foi minado por dentro. Chamar à experiência de oligarquia com fraca desigualdade e liderada por um ditador, é o mesmo que cair em erro, como no caso da Venezuela.

  • Luis Rainha

    15 Julho, 2017 às

    "as mulheres e os homens de Cabo Verde e Guiné-Bissau forjavam a independência sob a dura melodia das kalashnikov"? Ui, a guerra foi duríssima em Cabo Verde, com tremendas batalhas dia sim dia não… 🙂

Comments are closed.