Como seria de esperar, o novo assalto aos direitos dos trabalhadores, pela mão do Governo PSD/CDS, que vem anunciado como “Trabalho XXI”, é um tratado de retorno ao século XIX no que toca a direitos laborais.
O embrulho é sempre o mesmo: modernidade, competitividade, produtividade.
Pouco antes de o Governo apresentar o novo pacote do assalto, lia-se no Diário de Notícias: “A dois anos de lançar o novo modelo elétrico da VW, made in Portugal, o diretor-geral da Volkswagen Autoeuropa, Thomas Hegel Gunther, considera que a receita do país e da Europa para recuperar a competitividade perdida para o Oriente “tem de ser o aumento da produtividade”.” Vejam a habilidade com que o director-geral da Autoeuropa culpa os trabalhadores pela perda de competitividade, sendo que concretiza logo a seguir: “Em causa podem estar fatores de produção como o custo do trabalho ou o da energia.”.
O que Thomas Gunther faz aqui é afirmar, com algum descuido, que a forma de aumentar a produtividade é baixar os custos de produção, entre os quais os do trabalho, denunciando a realidade por detrás da ladainha da “produtividade”. O caso da Autoeuropa é paradigmático: a maior parte dos trabalhadores da produção realiza tarefas em tempo determinado pelo andamento da linha, tarefas específicas em tempos fixos. Os restantes trabalhadores da fábrica, no sector de compras, logística, administrativo, etc., desempenham tarefas no essencial relacionadas com a produção. Portanto, tal como na linha, há um tempo e um modo definidos. Não adianta ao administrativo despachar papelada do mês que vem, nem ao responsável pelas compras adquirir peças a eito ou tinta para pintar o dobro dos carros disponíveis para pintar. Ou seja, o ritmo de trabalho é determinado pelo patrão e pela capacidade humana dos trabalhadores e tecnológica das máquinas, deixando o gato da produtividade escondido com o rabo de fora.
Um exemplo bem aplicável ao tecido económico nacional é o do comércio, seja do pequeno comércio, seja da grande distribuição. Como pode o trabalhador decidir se vende mais ou não vende mais cafés ou tostas ou qualquer outra coisa por dia? Como pode o caixa de supermercado vender mais? O empregado de mesa? O repositor de prateleiras? Mesmo nas lojas de vendas em que existem prémios em função de vendas, a realidade é que o trabalhador tem pouca influência no volume de vendas, não tendo capacidade para decidir quem entra e quem compra e o que compra – pode influenciar com as suas capacidades próprias, mas não tem poder de decidir vender ou não vender. O mesmo trabalhador pode ter excelentes resultados num grande centro comercial da capital e péssimos numa loja do interior, por exemplo.
A que aumento da produtividade se refere então Gunther? Tendo-lhe descaído a boca para a verdade, Gunther afirma que a produtividade pode aumentar com a diminuição dos custos de produção. Esta é a verdadeira concepção de produtividade no capitalismo, que aliás, Marx já denunciava em diversas passagens de “O Capital”, como “(…) o aumento da produtividade do trabalho baixa o valor da força de trabalho e, com isso, sobe a mais-valia, enquanto, inversamente, a diminuição da produtividade sobe o valor da força de trabalho e baixa a mais-valia.” (in Karl Marx, “O Capital”, Volume I, Cap. 15)
No essencial, a verdadeira relação entre salário e produtividade é esta:
Ainda há dias, o Eco – jornal que funciona como agregador de notícias e produtor de conteúdos para os grandes grupos económicos e com vista à criação de uma cultura de apologia do patrão e da igreja do empreendedorismo – dá nota de um relatório da Comissão Europeia sobre a produtividade em Portugal. O eco online resume assim: “a produtividade laboral em Portugal é de 80,5% da média da União Europeia”, mas depois avança como causa “o tecido empresarial de Portugal ser dominado por pequenas e médias empresas com potencial limitado de desenvolvimento ou inovação”.
Marx, na sua “crítica da economia política” avança o conceito de taxa de exploração como verdadeira face da chamada “produtividade”.
É senso comum que os aumentos salariais só podem ocorrer num contexto de aumento da produtividade e existem até propostas por parte de governos portugueses para a indexação do aumento do salário mínimo à produtividade. Esse é um engodo que nenhum marxista pode morder, nem pelo lado da rejeição da ideia porque pode ser prejudicial ao trabalhador, nem pelo lado da aceitação quando se pensa que pode ser benéfica, como já vimos suceder, quando alguns – mesmo à esquerda – dizem que os salários deviam acompanhar a produtividade, sem cuidar de desmascarar o erro original.
Aparentemente, não se pode remunerar o trabalho com rendimento se esse rendimento não for produzido e isso parece bastante razoável. A questão fundamental é: o que é a produtividade e porque se remete tantas vezes para a “produtividade do trabalho”? Porque não nos referimos a “produtividade do capital”? e porque, mesmo nas abordagens de “produtividade” mais amplas, a questão essencial recai sobre o trabalho?
Se a produtividade do trabalho é dada pela fórmula simples
Produtividade do trabalho= (volume de saída)/(total de trabalho usado), então essa grandeza expressa-se numa razão unitária do tipo euro/hora ou unidade/hora; ou, de forma ainda mais simplificada, utilizando a mercadoria para ambos os termos da razão: euro/euro, que é como quem diz que a produtividade pode ser expressa apenas por um valor adimensional.
Por exemplo, se um processo carece de 10 horas de trabalho (a 5 euros cada hora) para gerar uma unidade de mercadoria que tem o valor de mercado 100 euros, então a produtividade do trabalho pode ser expressa por 1/10 = 0,1 unidade/hora ou 100/10 = 10 euros/hora, ou 100/50 = 2 euro/euro, o que significa que cada euro de input gerou um segundo euro de output, sendo que nos referimos a gastos com trabalho. Para facilitar, utiliza-se comummente no numerador o valor líquido do volume de saída. O que neste caso colocaria a produtividade nos seguintes termos P = 50/50, ou seja, P = 1, o que significa que a produtividade do trabalho é transformar um euro em dois euros. O valor da produtividade, tal como o capitalismo a concebe, e a que geralmente atribui o epíteto de “produtividade laboral” pode ser expresso sob a forma de razão ou de percentagem, mas esconde sempre o seu real significado.
Não existe nenhuma utilização marxista possível destes conceitos, na medida em que toda a consideração levada a cabo em torno da produtividade é feita com base num volume de entrada em preço e num volume de saída em preço, ou seja, “quantos euros são necessários para produzir um euro?”. Ao mesmo tempo, num contexto internacional e competitivo, coloca-se a questão “quantas horas são necessárias para produzir um euro?” e essa traz novas camadas de complexidade para a comparação de produtividades entre mercados ou países distintos.
Por exemplo, se uma mercadoria necessitou de 10 horas de trabalho social para se produzida na Alemanha e o seu preço final na procura é 10 euros, isso significa que cada hora de trabalho na Alemanha gerou 1 euro (bruto). A mesma mercadoria produzida em Portugal, consumindo as mesmas 10 horas de trabalho socialmente necessário, terá um preço final na procura muito abaixo dos 10 euros- usemos como exemplo 5 euros -, por força da elasticidade de preços do produto português ser muito superior à dos produtos alemães
(Elasticidade de preço na procura= (variação na quantidade da procura )/(variação no preço)). Isto significa objectivamente que uma hora de trabalho alemã produziu 1 euro (bruto) e uma hora de trabalho portuguesa produziu 0,5 euros (bruto), apesar de terem produzido exactamente a mesma mercadoria no mesmo período de tempo. Não é, portanto, o trabalho que determina a chamada “produtividade do trabalho”, mas factores que são alheios ao trabalho e ao número de horas de trabalho. O conceito de “produtividade” capitalista nada tem, portanto, a ver com a real capacidade produtiva de um sistema, mas sim, com a capacidade de apropriação de mais-valia e com a capacidade de roubar horas trabalhadas na retribuição.
Numa sociedade liberta da necessidade de apropriação, a produtividade seria sempre igual a 1, na medida em que o valor é medido em horas de trabalho socialmente necessário. É na apropriação de parte significativa do valor que se dá o processo de acumulação e extorsão.
Ou seja, a produtividade a que o capitalismo se refere não passa de outro nome para “capacidade de apropriação de mais-valia”. Dirão, mas num país com maior “produtividade”, também os salários podem ser melhores. Certo, e igualmente serão os lucros, pois que a “produtividade capitalista” coloca no numerador o volume de saída líquido, ou seja, deduzido dos custos de produção. Simplificando, é uma razão aproximada a P=lucro/(custos do trabalho), que não se distingue com clareza do conceito marxista de “taxa de exporação”, dado por s=Pv/v, em que Pv representa o excedente e v o valor efectivamente pago em trabalho, nem da visão marxiana de “produtividade” já expressa acima.
Existem outros factores, aliás inúmeros factores, que influenciam a chamada “produtividade” se considerada além da “produtividade do trabalho”. A infra-estrutura tecnológica, o capital fixo, o contexto fiscal e material, a logística, os custos de capital, o valor da moeda, entre outros. A utilização de uma moeda comum entre economias com taxas de elasticidades de preços na oferta e na procura, bem como situadas em diferentes níveis nos referidos factores (tecnologia, logística, custos de capital, etc.) coloca como única variável passível de ser utilizada para aumentar a competitividade entre essas economias, o valor da força de trabalho.
Regressemos ao exemplo da Alemanha, que precisava de uma hora para produzir um euro e de Portugal que precisava de duas horas para produzir o mesmo euro. Ora, para que tal seja possível, das duas uma, ou o capitalista português abdica do lucro ou impõe ao trabalhador mais sobretrabalho (trabalho não pago), quer seja através da desregulação do horário de trabalho, quer seja através da manutenção dos baixos salários. A utilização de uma moeda distinta não elimina o problema descrito, mas permite a cada estado controlar a oferta de moeda em circulação, assim também condicionando o seu valor. A política monetária é, dos vários factores referidos que podem influenciar a taxa de lucro e a competitividade, o de mais rápida resposta, pois é mais rápido decidir emitir ou não emitir moeda do que decidir electrificar toda a ferrovia de um país ou do que ligar cidades, portos, ou modernizar o capital fixo das empresas.
A utilização do euro penaliza duplamente os trabalhadores portugueses na medida em que contribui para manter baixos os seus salários, como única forma de competir na venda de mercadorias com elasticidades de preço muito distintas e na medida em que um euro em Portugal é muito mais caro do que um euro na Alemanha e não nos referimos ao seu valor no que toca a custo de capital (juros cobrados sobre dívida), cuja diferença também é evidente, mas ao seu valor concreto em horas de trabalho. Tomando por base o salário mínimo, por exemplo, em Portugal, um euro custa 13 minutos de trabalho, enquanto que na Alemanha, um euro custa 6 minutos de trabalho, menos de metade.
Isto significa que a cada troca comercial que realizamos directamente com a Alemanha, por exemplo, estamos a pagar, por cada euro trocado, metade do valor transacionado pois trocamos cada 6 minutos de trabalho alemão, 13 minutos de trabalho realizado em Portugal.
Nos momentos que atravessamos, de permanente ofensiva sobre os direitos dos trabalhadores, especialmente sobre o salário e a exploração associada, a mistificação de conceitos é um elemento retardador da tomada de consciência necessária para a ruptura com a política de direita, venha ela pela mão dos sabujos mais ou menos violentos do capital, que em todos os contextos urge desmontar.