PARTE II
Para combater as causas materiais da opressão das mulheres são necessárias ferramentas para as compreender, mas para compreender as causas da opressão das mulheres é necessário definir a categoria mulheres. Jamais poderíamos compreender os fenómenos que oprimem algo se esse algo constitui uma entidade nublosa e ampla. Quando um químico estuda a molécula de hidrogénio (H2), ele não pensa em incluir no seu estudo a molécula de água (H2O) só por esta conter na sua composição dois átomos de hidrogénio. Para o químico a categoria molécula de hidrogénio é estável, fechada e material: inclui somente dois átomos de hidrogénio e mais nenhum outro. O químico sabe, mais do que por intuição, que duas coisas parecidas não são duas coisas iguais.
Uma análise materialista do mundo compreende que a matéria antecede a ideia. Para toda a produção de ideias, crenças, sentimentos ou mesmo construções sociais, a matéria é o que se lhes antecede. Não vou agora deslizar uns séculos atrás para a velha discussão filosófica entre materialismo e idealismo. Parece-me, ainda assim, importante relembrar alguns conceitos estruturais, pois não são (ou não deveriam ser) caprichos elitistas de quem não tem mais que fazer com o seu tempo do que vir bater no vespeiro do mundo académico. São conceitos que fundamentam e ancoram o pensamento humano e qualquer análise social que daí advenha. Os comunistas têm particular responsabilidade de usar a lupa do materialismo na sua compreensão individual do mundo, mas sobretudo coletiva.
Então, para definir a mulher através de uma lente materialista começamos por destacar as propriedades que lhe são essenciais (e vinculadas à matéria), abstraindo-a de atributos secundários e acessórios. A mulher será definida pela sua realidade concreta e biológica antes de lhe serem imputadas quaisquer atributos culturais ou comportamentos sociais (que hoje nomearíamos como papéis de género). Se entendemos que a matéria tem primazia sobre a ideia: jamais poderíamos aceitar que a mulher se reduza a um sentimento, uma abstração separada das coisas sensitivas e da sua realidade material enquanto grupo. Seria de um profundo idealismo sustentarmos um conceito de mulher baseado no que lhe é atributo e acessório ou na crença do que é sentir-se mulher. Penso, logo existo; sinto, logo sou: para o materialista esta é uma insustentável análise do mundo. A opressão da mulher não é aleatória e arbitrária, mas uma realidade histórica que sofreu diversos processos até ao atual momento histórico. As diferenças biológicas entre os sexos, o surgimento da propriedade privada, a exploração da sua capacidade reprodutiva e a divisão sexual do trabalho são fenómenos que se relacionam e explicam a situação de subalternidade da mulher, transversal a todas as culturas e a todos os tempos.
Um dos argumentos-armadilha que tenta derrubar a definição estável e fechada de mulher é o de que o sexo biológico na natureza é fluído, mutável, um espectro (o que poderia ser poético se não fosse tão alienante). É também recorrente a apropriação da realidade das pessoas intersexo, como se o seu carácter de excecionalidade pudesse comprovar uma alegada plasticidade do sexo biológico. No entanto, é facilmente demonstrável que se uma residual parte da população nasce com variações entre características sexuais (primárias e secundárias) de ambos os sexos, esta população não constitui um terceiro sexo. Da mesma forma que os indivíduos que nascem apenas com uma perna ou nenhuma não constituem prova de que a espécie humana não é bípede. Além disso, dizer que um ser humano – ao se submeter a tratamentos hormonais e cirurgias extremamente invasivos e artificiais – está ao mesmo nível do peixe-palhaço (que muda de sexo de forma completamente natural e biológica), seria cuspir na campa de Darwin dizendo que A Origem das Espécies se resumiria ou poderia ser explicada pela seleção artificial.
Qual a necessidade de tudo isto? Trazer conceitos e teoria para cima da mesa, perder tempo no exaustivo debate academicista, quando poderíamos estar a informar as pessoas com dados concretos, por exemplo: estatísticas sobre o número de mulheres traficadas para fins sexuais; a idade média de entrada na prostituição; o que leva tantas mulheres e meninas a serem absorvidas numa realidade tão penosa ou como ajudá-las?
Pois para cada uma destas questões há um académico que nos diz: existem estudos para todos os gostos; as abolicionistas forjam estatísticas; a regulamentação da prostituição vai diminuir o tráfico sexual; quem vos disse, suas moralistas conservadoras e condescendentes, que as trabalhadoras do sexo precisam de ser ajudadas? As trabalhadoras do sexo têm gerência e autodeterminação. E finalmente: Calem-se, esse não é o vosso lugar de fala.
A necessidade de bater no vespeiro do mundo académico poderia traduzir-se por: denunciar o papel da academia na alienação de movimentos sociais como o feminismo. É importante enquadrar aqui mais umas questões. O papel da academia na sociedade não é um desbarato pingue-pongue de ideias ou um diz que disse que poderíamos facilmente ignorar e prosseguir. A academia tem um papel ativo na sociedade de hoje não só na produção de conhecimento científico, mas também na sua validação. Aos olhos das massas é impensável colocar em causa o que é aclamado pelas Universidades, daí o papel de responsabilidade das instituições enquanto formadoras e orientadoras do pensamento.
Quando a academia insere e defende, através dos seus programas curriculares nas universidades, terminologias como “trabalhadores do sexo”, o que acontece é a elaboração de um falso consenso científico e político junto das centenas de jovens que por ela passam anualmente. Além dessa intenção, é também evidente o descarte de responsabilidades por parte das instituições no que toca a assegurar condições materiais aos jovens: acesso gratuito à universidade, residências para estudantes, apoio social, democratização do ensino superior? À academia, estas medidas não soam suficientemente inclusivas.
Um caso ilustrativo é o da Universidade de Leicester, em Inglaterra, que desenvolveu um Guião de Boas Práticas como documento orientador de inclusividade dos estudantes “trabalhadores sexuais”. Consiste num documento dirigido à comunidade académica com normas específicas de interação com os estudantes visados, que inclui: respeito pelas escolhas individuais desses estudantes; uso de terminologia correta (assume-se trabalhador do sexo); combate ao estigma social e, flagrantemente, que jamais se assuma que um estudante deseja abandonar o trabalho sexual.
Nesta matéria, a academia em Portugal corre para não ficar atrás. Os exemplos são inúmeros, ano após ano mais ambiciosos, e manifestamente à vista, bastando uma pesquisa rápida num motor de busca para encontramos teses de mestrado, doutoramento, seminários ou o que vier à mão, repletos de contorcionismos retóricos (mencionados na parte I) para tentar vincular a regulamentação da prostituição a uma questão de direitos humanos.
Neste mundo Orwelliano repleto de novilínguas e duplopensar (conceito criado por George Orwell no romance 1984 que define a capacidade de a mente possuir simultaneamente duas crenças que se contradizem) fincar o pé no materialismo, no momento de debater os movimentos sociais contemporâneos, tem sido visto por alguns como um ato de coragem. Talvez porque perante a imensa ofensiva ideológica, uma demonstração de lucidez se transforme em ousadia. Falemos então sobre esta ofensiva ideológica. Qualquer voz que ouse trazer ao debate uma visão contrária, como o abolicionismo da prostituição, sabe que a receção que a espera é hostil: desde conservadoras, até acrónimos recentes como SWERF (Feministas Radicais Excludentes de Trabalhadores do Sexo), as opções de ofensiva são renováveis. Qual a intenção de tudo isto? Unicamente desmobilizar e descentralizar as mulheres da sua própria luta, retirando-lhes as ferramentas de compreensão da sua própria opressão, instalando a inércia e a divisão. A ofensiva está institucionalizada. Para as camadas jovens o que significa a voz da razão (do materialismo) perante a pujança das instituições? Como podemos exigir-lhes que se ergam perante os seus docentes, os seus colegas, as suas instituições?
O feminismo, tal como o comunismo, sendo um movimento de massas, nunca foi um movimento académico. Isto deveria bastar para pôr a descoberto a armadilha, mas não basta. É preciso dizer algo mais. Vejamos exemplos como um mestrado na Universidade do Minho chamado Sociologia do Género e da Sexualidade. O que encontramos é um Mestrado que se debruça sobre questões do feminismo, cuja abordagem e conteúdo são inteiramente escolhidos por académicos, que irá formar entre os jovens: mulheres, mas também homens, especializados em feminismo [entenda-se que o feminismo académico está para a luta das mulheres, como o liberalismo para a luta de classes]. Ora, como nos sentiríamos nós (os comunistas, os trabalhadores e as trabalhadoras) se um patronato doutorado em Estudos de Classe, acabadinho de sair do forno académico, viesse explicar ao proletariado como este deve (ou não) organizar a sua luta, em nome da revolução?
Deixarei esta questão planando.
As mulheres têm o direito e a necessidade de se poderem centrar como sujeito político da sua própria luta. Embora as mulheres trabalhadoras partilhem muita da sua opressão com a outra metade da classe trabalhadora, a matriz da opressão de ambos não é inteiramente a mesma. Nas palavras de Simone de Beauvoir (que muitos gostam de erradamente citar e poucos de verdadeiramente estudar):
«É verdade que a divisão do trabalho por sexo e a opressão que dela resulta evocam, em certos pontos, a divisão por classes, mas não seria possível confundi-las. (…) o proletariado sempre sentiu a sua condição na revolta, voltando dessa maneira ao essencial, constituindo uma ameaça para os seus exploradores; e o que ele visa é o desaparecimento como classe. (…) a situação da mulher é diferente (…) Nenhum desejo de revolução a habita, nem ela poderia suprimir-se enquanto sexo: ela pede somente que certas consequências da especificação sexual sejam abolidas. O que é mais grave ainda é que não se poderia sem má-fé considerar a mulher unicamente uma trabalhadora; tanto quanto a sua capacidade produtora, a sua função reprodutora é importante na economia social como na vida individual.» (O Segundo Sexo, Vol. I)
É evidente que homens e mulheres têm uma participação conjunta na luta pela liberdade e uma sociedade justa, lado a lado, mas a situação de Outro à qual a mulher está implicada não existe de forma arbitrária. Da mesma forma, a mulher não deixará de ter uma posição de subalternidade por cedência de alguns direitos e liberdades relativas por parte do Um – entenda-se Um (o homem) por oposição a Outro. Em suma, a tomada de consciência de classe enquanto produtora de riqueza é essencial à mulher na sua libertação, porém essa tomada de consciência terá igualmente de abarcar a sua tomada de consciência como força reprodutora, que lhe é exclusiva enquanto sexo. De outro modo, a luta das mulheres será sempre intermitente e frágil. Facilmente reversível, insuficiente ou abstrata.
11 Setembro, 2021 às
Muito bom e esclarecedor. Partilho deste pensamento e é importante a tomada de consciência. Parabéns à autora e ao Manifesto74 por possibilitar esta plataforma de conhecimento.
11 Setembro, 2021 às
Excelente, e incrivelmente necessário. Obrigada!
10 Setembro, 2021 às
Muito bom! Ambos as partes. Aguardo ansiosamente pelos próximos… Obrigado.
10 Setembro, 2021 às
“Quando um químico estuda a molécula de hidrogénio (H2), ele não pensa em incluir no seu estudo a molécula de água (H2O) só por esta conter na sua composição dois átomos de hidrogénio. Para o químico a categoria molécula de hidrogénio é estável, fechada e material: inclui somente dois átomos de hidrogénio e mais nenhum outro. O químico sabe, mais do que por intuição, que duas coisas parecidas não são duas coisas iguais.”
Esta é uma pobre caracterização de como um químico pensa.
Primeiro, é inevitável que um químico que pense sobre hidrogénio, pense em água. Não só porque esta é omnipresente como porque é produto da combustão do hidrogénio, logo, relevante para o estudo das propriedades do mesmo.
Segundo, o químico tem definições estáveis e materiais até não serem. Observações que façam desta categoria ou conceptualização inconsistente ou pouco útil forçam à mudança da definição.
A química, como uma ciência natural, tem toda a maleabilidade para se corrigir na base de observações do mundo material. Os conceitos são apenas estanques até serem substituídos, não dogmáticos.