Quatro mulheres de Abril*

Nacional

Quarenta anos depois da revolução, quatro mulheres falam das dificuldades que passaram, da miséria que lhes roubou a infância e das lutas que travaram contra a dureza dos tempos. De quando, sobre os estômagos dos portugueses, o peso da fome amarrava muitos à sopa dos pobres. E do que se começa a viver hoje em muitas localidades do País e que era sentido de forma brutal pelos trabalhadores durante o fascismo.

Viúva, e sem forma de sustentar a família, a mãe de Idália Martins foi uma das muitas mulheres que deixaram horas da sua vida nas longas filas de espera por um pedaço de alimento para os filhos.Do tempo em que a região de Lisboa era um mar de barracas e em que os homens não podiam ser meninos, Idália recorda que começou a trabalhar aos 12 anos como costureira. Também foi o caso de Odete Filipe e de Amélia Lopes. Com a mesma idade, uma estreou-se a tomar conta de crianças até que três anos mais tarde uma empresa de produção de material telefónico a contratou. A outra entrou para o sector do vestuário. Sobre estas e tantas outras mulheres, o fascismo deixou marcas que não esquecem.

Foi doloroso para Odete querer uns sapatos e a mãe não lhe poder comprar. Os pais trabalhavam por conta de outrem na agricultura e só aos oito anos lhe puderam dar uns botins de borracha. «Para que durassem mais», explicou. Em casa não havia electricidade e uma pia ao lado da chaminé fazia as vezes de sanita. Como a maioria das crianças da sua época, cumpriu a quarta classe e a condição social dos pais expulsou-a para o mundo do trabalho. O destino de Amélia foi o mesmo. Aos 12 anos, caminhava sete quilómetros diários para ir e vir da fábrica. Apesar da dureza das condições de vida, amplificada pelo facto de serem mulheres, nenhuma delas deixou de remar contra a corrente.

Foi também o caso de Rita Marcelino, cujo pai quis que os filhos aprendessem aquilo que ele não pôde aprender. «Tive sorte. Ele sempre me deixou com liberdade suficiente para poder ser eu a orientar e a decidir o que queria fazer», mas enfatizou o confronto com a realidade. Naquela aldeia do interior algarvio começou a conquistar suspeitas por fazer o que nenhuma outra rapariga fazia. Foi fundadora e a única sócia de uma colectividade juvenil, numa altura em que fazê-lo acarretava atentar contra a moral e os bons costumes.Viveu o 25 de Abril como trabalhadora da indústria de confecções e em 1974 esteve na tomada do Sindicato das Costureiras. Trabalha no sector gráfico em Setúbal, desde 1997, e foi eleita para a direcção do sindicato ano e meio depois de chegar à empresa. Recorda com dor os rapazes da sua idade que «iam para a terra dos outros e alguns ficaram lá», na guerra colonial. Não quer «de forma nenhuma, perder o direito a votar», que a avó tanto queria e não pôde ter. «O que nos estão a fazer é contra aquilo que eu defendi no meu voto.»

No extremo norte do País também Amélia Lopes dava corpo à irreverência. Até aos 20 anos, fez parte do clube juvenil da aldeia, que até começou por ter o apoio do pároco da freguesia. Mas não durou muito. «Fizemos um pasquim a denunciar a situação social que se vivia e fomos desalojados pelo padre». Indignada, Amélia recorda que passaram a encontrar-se junto ao rio Cávado e que era ali que debatiam e conversavam. «Éramos considerados marginais. Levávamos a tenda e acampávamos no Verão. Era o nosso espaço livre. E eu era considerada rapariga da má vida porque não ia ao banho de combinação. Não dava jeito para nadar.»

Estar no meio deles

As grandes fortunas do País foram construídas sobre o suor de milhões de trabalhadores. À sombra de Salazar e Caetano, os grandes grupos económicos usavam o Estado para instaurar o terror em todas as esferas da vida. Nas fábricas ou nos campos, os operários que ousavam levantar a cabeça podiam facilmente bater com os costados nos cárceres fascistas. O preço a pagar era elevado, mas foi a coragem dessas mulheres e desses homens que inspirou outros a juntarem-se aos combates que derrotaram a ditadura.

«As trabalhadoras iam mal vestidas, com umas chinelinhas enfiadas nos dedos, e eram advertidas de que deviam ir melhor», é como Idália Martins descreve o ambiente na Plessey Automática Eléctrica Portuguesa. «Não podiam estar de calças na fábrica. Uma secção inteira podia ser castigada se alguém chegasse atrasado». E recorda a operária que se matou debaixo de um comboio em Cabo Ruivo porque estava grávida. Em 1972, uma das secções de afinação de molas acorda lutar para aumentar o salário. Supostamente, todo o grupo se devia ter levantado para exigir o aumento, mas só se levantam Idália e uma colega. A tremer como varas verdes, ganhou coragem e expôs a reivindicação. Passada uma semana, conquistaram o aumento através de um prémio de produção. «Logo ali, ganhei uma grande consciência».

A norte, desde que entrara para a fábrica de vestuário, Amélia Lopes olhava com inveja para as instalações da Grundig e repetia às colegas que um dia trabalharia ali. Em 1972, assistira à luta dos trabalhadores desta empresa. Emocionada, descreve como alguns saltavam pelas janelas para fugir à PIDE, enquanto outros eram empurrados para camionetas cujo  destino era a prisão. «Eu queria estar lá no meio. Queria saltar o muro como eles.» Faz em Outubro 40 anos que lá está.

Amélia recorda que um dia, enquanto conversavam, uma colega derrubou dezenas de embalagens de camisas, prontas a ser enviadas para Angola. O patrão abriu a porta e aos berros despediu a operária. Já com a semente na consciência e o sentido de justiça, Amélia exigiu que a despedisse também. Sob a condição de poder testemunhar a favor da colega no tribunal, aceitou o pedido do patrão para regressar ao trabalho. «Ele não só anuiu, como a trabalhadora ganhou o caso e recebeu uma boa indemnização».

Eram já os últimos anos do regime fascista e os protestos agudizavam-se por todo o País. Idália Martins era agora chefe de secção e, ao contrário do que era regra na Automática, recusava-se, por exemplo, a impor limitações às idas à casa-de-banho. Lembrava-se bem da vez em que uma colega fizera as necessidades ali, à frente de toda a gente, porque uma supervisora havia decidido que já tinha ido gente a mais. No refeitório, era olhada com estranheza pelas chefias, que tomavam as suas refeições à parte dos trabalhadores, enquanto Idália comia entre as operárias.

Em 1973, os trabalhadores decidem convocar uma greve. Enquanto chefe de secção, Idália não sabe mais do que aquilo que leu num comunicado que apanhou e escondeu no bolso. A paralisação estava marcada para dez minutos antes das oito e, no dia seguinte, não queria acreditar no cenário montado na fábrica. Junto à secção de bobinagem, engenheiros, chefes e encarregados concentravam-se diante do separador de vidro. Faltava pouco tempo e ninguém sabia qual seria a reacção dos trabalhadores. Iam parar ou não? «Quando o ponteiro do relógio saltou e marcou dez para as oito, caíram-me lágrimas dos olhos», confessa Idália, «na cara daquela gente, as operárias levantaram-se e desligaram as máquinas».

*Publicado originalmente com o título «Com a semente de Abril conquistar o futuro», no Jornal da Fiequimetal, órgão dos trabalhadores das indústrias metalúrgicas químicas, eléctricas, farmacêutica, celulose, papel, gráfica, imprensa, energia e minas.