Quatropães

Nacional

Na vila de Quatropães cada um vive como pode. Aqui, quando se sai de casa a molhar os pés no mar, não se vive, sobrevive-se. No calor da revolução ocorrida há 40 anos, Quatropães cresceu em tudo menos nas fronteiras. Havia trabalho e pão e cultura; escolas e hospitais; mais fábricas e exércitos de mulheres e homens, com os filhos pela mão à espera do toque do sino que chamava para a entrada da escola, a que se seguia o toque de entrada na fábrica.

Quando Quatropães estava acordada, a vida era mais lenta mas muito ocupada. As bicicletas carregavam as pessoas a caminho do mercado e voltavam com as mesmas pessoas carregadas do mercado. A camioneta que passava, naquele tom acastanhado, também levava gente carregada. E ia torta. Como torto era o cobrador dos bilhetes, que chocalhava a mala ao ombro à procura do troco. Os bilhetes tinham cores diferentes. Meio-bilhete para a canalha. Outros bilhetes para outros destinos.

Mais longe que o outro lado do rio só mesmo saindo e pagando outro bilhete para entrar no autocarro laranja, que ia até à cidade mesmo a sério, com outros autocarros e eléctricos e os trolleys, que se mantinham presos por arames. Era difícil olhar para o céu na cidade, pelo emaranhado de cabos, enquanto se mantinha o respeito aos polícias soldados de cinzento. O cinzento era a cor predominante, mesmo depois da revolução. É defeito da cidade.

Quatropães desenvolveu-se no sentido em que o desenvolvimento traz conforto e nada mais. Mas empobreceu. Tenho para mim que em Quatropães as pessoas eram mais felizes quando se conheciam. As ilhas foram desaparecendo e com elas os ratos, as baratas, as centopeias e nós, que fomos ficando invisíveis. Ou iguais, mais coisa menos coisa.

Como no início do século passado, Quatropães está hoje igualmente feudal. Das casas senhoriais ficaram os condomínios fechados. Como então, há uma parte considerável de quem lá vive que não sabe como é a vida dos outros. E nem os preocupa muito, claro, que a vida dos outros é lá com eles. E ninguém ousa meter a colher.

Em Quatropães não se vive, sobrevive-se. Viveu-se o apogeu dos investidores que vieram de fora despejar dinheiro e Quatropães cresceu para dentro e não por dentro. Acabaram a vender cafés uns aos outros. Cada um com o seu. Depois fecharam e o barulho do manípulo cheio de pó a bater na madeira para tirar o café é raro e estende-se quase só pela linha de praia, ali, onde se acorda com os pés molhados.

Quatropães viu muita gente sair mas outros chegaram. Vêm dormir a Quatropães e saem de manhã, quando entram nos carros, com os olhos mais ou menos despertos. Depois, voltam à noite. Outros não vão. Ficam por cá porque não há muito o que fazer. A idade é antiga para trabalhar, dizem, e o álcool é sempre um refúgio tão legítimo como o yoga da moda, para quem pode.

Quatropães é cimento e alcatrão e casas vazias, que outrora, no tempo do dinheiro que jorrava dos bolsos de alguns, estavam cheias. Agora jorra mais de menos bolsos. Quando Quatropães acordar e quiser sacudir o pó, será outra vez o bom povo de Quatropães, que há 40 anos também se levantou e sacudiu o pó de outros 40 anos.

Ontem, com o aumento do salário mínimo, cada trabalhador que o aufere poderá comprar menos de Quatropães por dia.