Quid est veritas?

Internacional / Nacional

A célebre dúvida de Pilatos, trazida até nós pelo evangelho de João (Jo 18, 38), foi sempre tomada como uma das grandes interrogações da humanidade. Durante séculos, filósofos, pensadores, ideólogos, sociólogos, cientistas, historiadores, homens e mulheres, novos e velhos procuraram a grande resposta e, até hoje, sem grande sucesso. Mas quando digo ‘até hoje’, refiro-me literalmente ao presente e marcando desde já, e com toda a segurança, o término dessa longa viagem de crítica e de reflexão. Sim, porque, alvíssaras, já temos uma resposta: a verdade, hoje, é aquilo que cada um pretende que a verdade seja.

A verdade será qualquer símbolo posto à sua frente que encaixe naquilo que o próprio já tem por idealizado. A verdade será a peça perfeita do puzzle dos seus próprios preconceitos. A verdade será por outro lado repelida se, ainda que substancialmente fundada em factos concretos, não servir a narrativa que se tem por adoptada. Um vírus pandémico, se se quiser será farsa, se se quiser será o fim da humanidade, mas sobretudo, seja lá o que for, será fundamentalmente aquilo que se quiser. Uma guerra ou invasão, que se se quiser será obra de comunistas, se se quiser será obra de fascistas, mas sobretudo, seja lá o que for, será fundamentalmente aquilo que se quiser.

Um título de notícia forjado a preceito é apenas o que basta. Na era actual, só um doido varrido se preocupará em ler qualquer coisa mais do que uma pequeníssima frase com a qual desde logo se concorde. E tanto assim é que o próprio emissor, reconhecendo esta particularidade, já só se preocupará com a frase do título e nada mais do que a frase do título. Mesmo que, por baixo, seja obrigado a desdizer ou a relativizar “o soco” no estômago dos caracteres garrafais que, entretanto, já se transformaram em “toda” a mensagem. Assim sendo, no meio de abundantes cadeias de partilhas, é proliferado livre e imparavelmente aquilo que é, hoje, de forma indiscutível, a verdade.

Nestes tempos, a remissão para o concreto e para o facto é inútil, porque facilmente ignorada. A sucessão vertiginosa de repetições de ideias falsas ou manipuladas, em berrata ensurdecedora, em quantidade e nunca em qualidade, abafa qualquer tentativa de oxigenação factual. O ‘não’ é sempre ‘sim’, o ‘sim’ pode ser sempre ‘não’, porque aqui e agora, a verdade, repita-se mais uma vez, é exactamente aquilo que cada um quer que ela seja. Pilatos por fim pode, sossegadamente, lavar as suas mãos. A verdade é só isto.

4 Comments

  • lucia silva

    8 Março, 2022 às

    Boa noite, nunca tinha lido nada do manifesto 74 . Como é possível? Identifico me claramente com as vossas crônicas. Tudo tão claramente bem escrito e de simples entendimento. É a minha linha. Um grande bem haja, desta nova seguidora

  • Jorge Nunes

    7 Março, 2022 às

    Ou seja, estes são tempos perigosos, onde se encontram muitos ex-militantes ou ex-simpatizantes a dizer mentiras, para chegar um pouco mais longe na sua profissão de pessoas sem caráter.

    Há bons exemplos disso e que fazem lembrar aquilo que é o mais vil dentro de um ser humano: mentir, ser cobarde ou ser um delator.

    Num dos blogues, o qual me correspondi ultimamente, «Ladrões de Bicicletas», a maior parte dos autores se acobardou, devido às imensas narrativas sobre a guerra na Ucrânia (todas elas iguais), enveredou por um discurso «politicamente correto» e começou a censurar comentários. A maior parte dos meus foram anulados ou censurados.

    Discursos de verdade ou discursos de mentira? Querer ser jornalista ou querer ser cobarde?

    Não esquecer que a mentira, a cobardia e a falta de vergonha marcam o caráter de um ser humano ou a falta dele. Quando se perde o caráter, perde-se tudo.

  • José Mendes

    3 Março, 2022 às

    Em boa verdade não há, nunca houve, nem é necessário que alguma vez haja verdade.
    Agostinho da Silva dizia, no seu jeito pessoal. “Todo aquele que mostra a verdade na sua mão direita já tem na mão esquerda uma qualquer inquisição para a impor”.
    O caminho faz-se andando.
    Talvez a verdade seja o rasto desse caminho feito andando pelos nossos próprios pés.
    Talvez essa verdade não comporte nenhuma narrativa, mesmo metodologicamente organizada, documentada e objectivamente provada.
    Talvez a narrativa que vale é a que reside na memória coletiva dos Povos que desenharam os seus próprios pés nesse caminho inexplorado.
    A verdade proclamada acabou.
    As tábuas da Lei que chegaram às mãos de Moisés erguidas aos céus não são nenhuma verdade.
    Nenhuma outra semelhante proclamação pode erguer-se à condição de verdade.
    A intermediação mediática deixou de ser verdade. Tão pouco é a voz do dono. Antes se arrasta na peugada dos ecos virais das redes sociais.
    A transição da verdade oficial para a verdade instantânea sem autor, censura, autocensura, edição ou simples reflexão, coerência, lógica ou nexo é no momento o desafio coletivo universal que individualmente mal percebemos.
    Podem as forças bélicas ser assustadoras e não assustam ninguém, não condicionam essa vertigem emocional viralizada momento a momento.
    Talvez essa confusão incoerente, esse conteúdo sem forma seja afinal, a cada instante, a única verdade.

  • Nuno

    3 Março, 2022 às

    ‘uma verdade’ e ‘a verdade’ são formas de verdade distintas.

    parece-me equivocado considerar que a verdade é, lá no fim, “aquilo que se quiser”, como espécie de joker, trunfo, para se encaixar num ‘ideal’. mas isso, vendo bem, é já errado na afirmação em si, pois nela a utilização de verdade é um meio (uma forma de verdade) para se chegar ao fim ideal.

    ‘uma’ verdade, para ser qualquer coisa de verdade, precisa de ter uma correspondência com o real. Uma correspondência qualquer e verificável com a realidade é, assim, uma forma de verdade. (por exemplo, uma guerra ou uma invasão na Ucrânia, são duas formas de correspondência com a realidade, logo, duas formas de verdade; assim como esta guerra ser obra de facistas é uma verdade; o mesmo já não me parece possível de corresponder com os comunistas)

    Diferentemente, ‘a’ verdade, diz respeito à categoria universal, isto é, ao que de comum existe entre as formas de verdade particulares. (por exemplo, a verdade do capitalismo na causa da guerra e da invasão).

    Não deveria ser nenhum espanto, para marxistas, que o desenvolvimento do individualismo produzisse, como efeito, o desenvolvimento de verdades particulares, e que essas se entrechocam de ‘uma’ em ‘uma’ verdade. Camaradas, isso só nos deveria dar mais força ao desenvolvimento de verdades universais, como resposta ou como caminho, às formas de verdade particulares (que tentam ser aquilo que lhes apetece).

Comments are closed.