Resposta às perguntas do Canal de História

Internacional

«Será isto uma prova da existência de uma raça pré-histórica de gigantes?» corte para animação em 3d «E terão esses gigantes construído… as pirâmides do Egipto?!» imagens de arquivo de pirâmide sob efeitos de pós-produção de filme barato de terror «E será que os lendários gigantes não eram seres humanos deformados, mas extra-terrestres vindos do espaço?» sequência rápida de fotografias de obras de arte antiga, de várias civilizações…

Tantas perguntas, tão poucas respostas, diria Brecht. Acabo de assistir a isto no National Geographic Channel. Podia ser só má televisão, mas é muito mais do isso, é a liberdade de fazer as mais absurdas e perigosas perguntas, a despeito de milhares de anos de respostas dadas, pensadas e trabalhadas, intoxicando as futuras gerações com fumos digitais da formidável nova idade das trevas.

Os canais de televisão estado-unidenses que antes passavam documentários, hoje passam reality shows. Onde antes se podia ouvir historiadores, agora apre(e)nde-se sobre camiões, armas e outras curiosidades. Alguns exemplos revestem-se de óbvia transcendência cultural, dizendo mais sobre a sociedade em que vivemos, que volumes de sociologia: apenas sobre prisões, temos, actualmente, a liberdade de escolher entre «Mulheres atrás das grades», «Presos no estrangeiro», «Prisões americanas», «Fugas da prisão», «Prisões de alta segurança» e «Prisões: bastidores». Mas, ponto de ordem à mesa, se eventualmente parecer trocista esta singela ideia, de ter a liberdade de escolher o programa sobre prisões, desenganemo-nos… que os tipos que mandam nisto têm mais inteligência que sentido de humor.

Afinal que sociedade livre é esta, que vive obcecada por estar presa? Entretanto, nestes mesmos canais, são zero os programas sobre literatura. É que dá-se que o formato do reality show evadiu-se, já há mais de uma década, dos matadouros de inteligência onde eram guardados, assaltando de supetão toda a televisão e a internet das massas. E como as consequências desta transformação vão muito além do óbvio, debrucemo-nos sobre alguns exemplos vívidos. O reality show não se compadece de método, nem estudos nem tampouco pode aguardar por conclusões científicas: exige permanentemente mais acção e novas descobertas, sempre e agora. Em virtude desta pressa, os programas sobre a vida selvagem que antigamente nos mostravam o resultado, longamente arquitectado de semanas de estudo e trabalho de campo, reclamam agora uma violação, violenta e imprevisível, da ordem das coisas: onde estava o documentário onde se observava a vida de uma serpente, insuspeita da presença das câmaras, agora assiste-se (sim, assiste-se) a um marialva que perturba a serpente no seu habitat natural, forçando-a a engoli-lo vivo, num fato especial produzido para o efeito, para gáudio ou náusea do público. A ciência dá lugar à aventura e o cientista cede passagem ao explorador, normalmente um labrego simpático com indisfarçáveis matizes jingoistas.

O reality show, por outro lado, não tem quaisquer pretensões históricas ou científicas, embora fale de história e de ciência. É apenas entretenimento, esgrime num sorriso amarelo. E isso dá-lhe o direito de mentir, deturpar, confundir e alienar-nos a todos. Vejamos outro exemplo: quem experimentar, a qualquer hora do dia, passar a correr entre o National Geographic, o Canal de História ou o Discovery Channel, entre outros possíveis, encontrará certamente pelo menos um programa sobre compras e vendas. Num, compram-se antiguidades que são, depois, vendidas em segunda mão, noutro, seguimos o quotidiano de uma família que opera uma loja de penhores, noutro ainda, acompanhamos o trabalho das pessoas que compram armazéns repletos de coisas perdidas ou abandonadas. À superfície, pode parecer que isto terá pouco de ideológico, para além do claro endeusamento do dinheiro e do insinuado fetiche com o comércio, mas, novamente, é muito mais do que isso. É que, surpresa das surpresas, os protagonistas destes reality shows comentam as coisas que compram e vendem, dão apontamentos históricos, tecem comentários políticos e procuram resumir tudo, de Darwin à revolução francesa passando pela URSS, em burlescas aulas de quatro a dez segundos.

À medida que o capitalismo retira ao ensino público todas as faculdades democráticas e culturais dispensáveis à produção, são, progressivamente, estes veículos os principais formadores ideológicos, filosóficos e históricos das massas. Que defesas tem um adolescente que, ligando o CANAL DE HISTÓRIA, escute um «autor» a dizer-lhe que Hitler teve contacto com extra-terrestres? Que contraditório tem o documentário que explica que o holocausto aconteceu por uma qualquer mania, crença ou desgosto pessoal de Hitler? Que televisão protege a História que o Canal de História destrói?

E desiludam-se os que acham que este efeito «dica da semana» só se debruça politicamente sobre a História recente. Voltemos ao exemplo anterior: o National Geographic dá palco a dois «investigadores» dos EUA, por sinal de origem portuguesa, que «investigam», sempre num registo «em directo», a possibilidade de uma fabulosa raça de gigantes ter construído algumas estruturas em pedra com muitas centenas de anos. A premissa é simples (e semelhante à das pirâmides terem sido construídas por extra-terrestres): os povos não-europeus e não-brancos nunca poderiam ter construído semelhante coisa, não tinham os conhecimentos nem a inteligência que, nesse tempo, só os brancos europeus detinham. E assim, a partir da falsificação de História tão longínqua quanto o Antigo Egipto, reforça-se e legitima-se o poder da classe dominante.

Reality shows sobre prospectores de ouro, pescadores de atum e motoristas de pesados, documentários sobre extra-terrestres, nazis em bases lunares e monstros mitológicos escondidos nos esgotos: é este o conhecimento que o capitalismo quer para as massas; é com esta História que os donos dos meios de produção nos querem esmaecer; é nesta nova era medieval que nos querem cegar. Destruir o capitalismo, até à sua última estrutura, não é apenas o interesse dos trabalhadores de todos os países, é o interesse vital do nosso milenar património de ciência conhecimento e da própria inteligência humana.