Ricardo Salgado "falou verdade"

Nacional

De certa forma, o banqueiro que mais honesto foi até agora na Comissão de Inquérito sobre a gestão do BES/GES, foi mesmo Ricardo Salgado. Apesar de ter dito não ter dado ordens para falsificação de contas e ocultação de passivo na ESI (holding-mãe do grupo Espírito Santo), e de ser evidente que, tendo ou não dado a ordem sozinho, terá integrado o grupo que a determinou, Ricardo Salgado mostrou com crueza o processo que levou à queda do BES, sem sequer tentar mascarar os processos de financiamento que conduziram o BES a uma situação de colapso, que veio a implicar a colocação de 3,9 mil milhões de euros no Banco por parte do Estado.

Com excepção dos comunistas, todos os grupos parlamentares se vão, com mais ou menos intensidade, centrando na componente mediática de uma comissão de inquérito, que é precisamente aquela que não cabe a uma comissão de inquérito: a do julgamento e atribuição de culpa. Tentando desvendar e, quando o não conseguem, inventar uma espécie de enredo de novela, os deputados vão sempre construíndo uma teia densa de relações e narrativas à altura de argumentos de filmes sobre a máfia. E eventualmente esses enredos corresponderão à verdade e importa apurá-los. Mas nos tribunais.

À comissão de inquérito cabe compreender quais foram os mecanismos que permitiram que um grupo privado crescesse tanto, que ganhasse tanta influência junto do poder e que processos usou ao longo do tempo para conseguir manter a circulação de crédito entre o banco e as empresas do próprio banco. Compreendendo isso, o parlamento não terá outra solução senão reconhecer o falhanço total do sistema de supervisão, a submissão do poder político ao poder económico e a necessidade de garantir o controlo público da banca.

Quaisquer conclusões aquém destas ficarão, independentemente de quais sejam, aquém das exigências. Tentar circunscrever a Comissão de Inquérito a um tribunal, apurando as culpas da família, os contornos da má-gestão, demonizar os banqueiros caídos, será um acto de falta de respeito pela comissão e pelos tribunais. Pela comissão porque pode e deve ir mais longe, pelos tribunais porque essas conclusões devem caber-lhes.

Ricardo Salgado descreveu, como dizia, o problema com uma naturalidade espantosa. E ainda recomendou livros aos deputados do PS, para aprenderem como deve o Estado salvar bancos sem bulir com o direito de propriedade privada. Mas o essencial, independentemente das manobras de desresponsabilização pessoal que realizou, foi ali explicado mais ou menos desta forma:

“Estava tudo muito bem até à crise internacional de 2008 e depois até às suas repercussões nacionais em 2009/11, a partir da qual o negócio em torno da dívida soberana portuguesa começou a ter problemas, por força do assalto das agências de rating à republica. O BES tinha muito investimento na dívida soberana portuguesa e isso afectou-o. Ao mesmo tempo, o BES financiava muitas empresas da área imobiliária e outras do sector transaccionável, tal como o GES – principal cliente do BES – tinha muito investimento concentrado no imobiliário e outras actividades não-financeiras.

Não fora essa crise e o ramo não financeiro – Grupo Espírito Santo -, tal como a ESI (holding de topo do BES) nunca teriam entrado em default (não pagamento da dívida ao BES) e o problema nunca se teria manifestado.”

Estas palavras não são uma citação fiel, mas traduzem de certa forma o essencial da interpretação que Ricardo Salgado faz da origem do problema. A naturalidade com que expressou esta opinião mostra com clareza que a circulação de crédito entre as empresas do GES e o BES era uma prática comum, tal como aliás o Partido Comunista Português vem alertando desde a primeira reunião da Comissão de Inquérito. No essencial, Salgado diz-nos que o banco nunca teria tido problemas se não fosse o passivo da ESI, ou seja, caso a ESi continuasse a pagar a dívida que tinha ao BES.

Isso é provavelmente verdade, mas não deixa de ser igualmente verdade que isso significa que o BES continuaria a desviar recursos dos seus depositantes para favorecer as empresas do próprio Grupo, ou seja, os depositantes do BES estavam sem saber a financiar a actividade das empresas do grupo económico do BES, sem que o risco desses financiamentos fosse acautelado.

Que um banqueiro, cabeça de um grupo monopolista que aglutina empresas do ramo financeiro e do ramo não financeiro, pense assim, não me espanta. Mas o que é preocupante, e essa é uma das questões centrais desta comissão de inquérito – apesar de não ser o “sangue” que a imprensa procura – é que o Banco de Portugal, o Instituto de Seguros de Portugal e a Comissão de Mercado e Valores Mobiliários e os sucessivos Governos da República – PS(D)CDS – sempre souberam desse esquema de atribuição de crédito em casa própria pelo BES, sempre souberam da utilização dos depósitos das pessoas para financiarem aventuras da família e dos amigos, e alguns membros de governos chegaram mesmo a comer as migalhas que iam caíndo desse prato, com bolsas nos estados unidos, carros, motoristas, financiamento de campanhas eleitorais, salários obscenos, promoções e outras verdadeiras regalias conquistadas, não pelo trabalho, mas pela complacência ou pela submissão, pela subserviência e pela corrupção.

Ricardo Salgado falou verdade pelo menos nesse ponto. O problema não teria rebentado se a ESI não fosse a crise. O que quis dizer foi que, não fossem os prejuízos resultantes dos resultados da área não financeira do GES, ainda hoje, o Governo, o Banco de Portugal, a CMVM, o ISP estariam calados, como sempre estiveram, a ver o banco desviar depósitos dos clientes para financiar o “empreendedorismo” da família Espírito Santo. Isso demonstra bem que todos consideram isso normal. Ou seja, o problema não está no facto de terem existido ao longo de décadas desvios de dinheiro que ascendem a muitos milhares de milhões de euros, o problema está no facto de ter corrido mal.

Aí começa o que deve ser a primeira preocupação da Comissão de Inquérito.