Não é sobre a existência ou não de violação de que vou falar. Sobre provas, sobre o desfecho «provável», sobre o #metoo, sobre quem mente. É precisamente sobre o que esta situação demonstrou quanto à fragilidade de supostos movimentos feministas – altamente patrocinados pelo governo e pelos media – sobre a sua inconsistência atroz e sobre a instrumentalização dos direitos das mulheres como causa.
Nos últimos meses, talvez último ano, o nosso país tem vindo a ser assaltado por uma mediatização de figuras que surgem – agora – como arautos da defesa das mulheres. Sendo a tónica a «defesa das mulheres». Naturalmente, não é difícil entender este fenómeno. O capitalismo precisa dele como balão de oxigénio para se manter à tona e demonstrar que funciona, que até estas questões são devidamente endereçadas e fazem parte das agendas políticas, que até já são elevadas a categorias mediáticas e estão presentes, inclusive, nas programações de entretenimento, verdadeiras causas sociais.
Não é portanto de estranhar que uma elite – que aparece depois de dezenas (centenas!) de anos de luta sem nunca ter dado o «peito às balas» – apareça agora, devidamente sustentada com o carimbo da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, composta por investigadoras, jornalistas, apresentadoras de televisão e surja como baluarte e exemplo de combate. Mas que mulheres defende esta elite? Mulheres iguais a elas – brancas, burguesas, com poder económico e algum estatuto social (seja lá o que isso for) ou conhecimento público (seja ele por que motivo for). Ou seja, mulheres que, independentemente da política que praticam ou defendem têm em comum duas coisas: biologia e poder.
Não é à toa que as mesmas que se dizem feministas põem Assunção Cristas no mesmo patamar que Marielle Franco, contudo, não se atrevem a falar sobre as operárias da Triumph. Tão pouco se importam com os desenvolvimentos políticos no Brasil conquanto possam fazer vídeos de si mesmas a cantar dentro de um carro com evocações tão vazias como #elenão, sem uma frase a explicar o porquê ou afinal o que é que #sim. Estas mesmas mulheres que contam com apoio incondicional de Joana Mortágua que, inexplicavelmente se catapultou para a zona do entretenimento político do que propriamente da luta política, de braço dado com, por exemplo, Idália Serrão, a pior Secretária de Estado da Reabilitação de que há memória, que arrasou com os apoios do INR às pessoas com deficiência, desvalorizou as suas associações, cortou o seu financiamento e teve um ano de não fornecimento de próteses e ortóteses legalmente devidas. Ao lado de Isabel Moreira que se apressou a defender Assunção Cristas, cujas políticas de habitação afectaram indubitavelmente o direito a viver com dignidade de milhares de mulheres, particularmente as mais vulneráveis ou ao lado de Fernanda Câncio que acha que não ter dinheiro para pagar a renda equivale a comer num restaurante (wherelse?) e sair sem pagar.
Alianças estranhas e preocupantes porque menorizam verdadeiramente o que é o racional da luta pela emancipação das mulheres: a emancipação económica, a emancipação social, o fim da exploração. Isto não existe neste discurso porque são estas as primeiras a não reconhecer a exploração laboral (cingindo-se às discriminações salariais que pomposamente chamam de gender gap) mas nunca falando da violação dos direitos de maternidade, dos horários de trabalho, da destruição da contratação colectiva, etc etc etc. Nunca referindo que a Segurança Social discrimina as mulheres quando lhes baixa o subsídio por maternidade, o subsídio de doença, nunca paga as faltas para assistência à família (e aqui mais uma aliada, a Sónia Fertuzinhos, que nunca aceitou que tais faltas fossem pagas pelo patrão nem pelo Estado). Nunca referindo que a CIG tem uma agenda política que se traduz em quase nada no dia a dia das mulheres mas que financia, e com bastante dinheiro, sempre as mesmas associações sem resultados que se possam dizer visíveis (Umar, Capazes, etc) e que expulsou as organizações sindicais do seu conselho consultivo no tempo da aliada Elza Pais. Que defendem as quotas parlamentares por uma questão de poder e não de criação de condições efectivas de participação das mulheres na vida política.
Alianças que potenciam os soundbytes e destroem um património secular de lutas e vitórias porque o menorizam e desvalorizam, fazendo o jogo do capital. Umas caras famosas que falam da igualdade e que afirmam, como eu ouvi, que «só não é feminista quem é burro ou estúpido» e lançam uns cursos de formação de «feminismo, why not?», ridicularizando uma luta que é tão justa quanto urgente e necessária.
E claro, depois temos os arautos da dita esquerda que escrevem barbaridades (e à hora que escrevo isto já fui higienizada e banida e todos os meus comentários apagados) como «tipas que aceitam dinheiro», «ela é uma prostituta de luxo», ridicularizando e pretendendo humilhar (num português que faz crianças de 12 anos corar de vergonha alheia, mas enfim, são pessoas que gostam de falar do seu grau académico com arma de compreensão do mundo, lá do alto da burra) e que se subsumem à expressão mais básica do preconceito de classe, do desprezo pelo ser humano, da incompreensão política e se juntam ao coro de vozes que afirma que «ela quer é dinheiro», «pôs-se a jeito», «estava a pedi-las», «golddigger», contribuindo para a perpetuação dos entendimentos mais básicos do papel da mulher na sociedade.
Já não bastava a sexualização das leggings (que custam dois ou três euros e são bem mais práticas para a gestão do orçamento famílias), o burnout do lenço azul, a utilização de estagiários (ou mestrandos ou sei lá) para lhe irem buscar café em sessões públicas a que assiste e se faz acompanhar do seu séquito, a afirmação de que as pessoas da aldeia não a percebem porque tem um doutoramento e que as mulheres brasileiras são pobres, ignorantes e preguiçosas porque só comem pão – agora uma mulher que apresenta uma queixa por violação é, e cito «uma prostituta de luxo».
Tudo isto no mesmo dia em que o site das Capazes correu em defesa do ídolo nacional, deixando à justiça o que é da justiça (não o tendo feito – e este paralelismo é uma luva – com Lucho González, por exemplo) e transparecendo o incómodo latente mostrando que só são #metoo quando não é o CR7: #elenão, #elenunca.
Ficamos, com estes tristes episódios, a saber que para estas mulheres, dependendo de quem se queixa e de quem acusam, afinal 12 horas de assédio dentro de uma sala para que alguém assine uma folha é aceitável, que trabalhar num bar é ser «prostituta de luxo», que todos são inocentes até prova em contrário (menos quando alguém decide que não), que não apresentar queixa no imediato é sinal de culpa (as vítimas de violência doméstica, portanto, apanham porque querem e são culpadas por deixarem ir até tão longe e as vítimas de assédio laboral a mesma coisa – por falar nisso, sobre a corticeira ainda estou à espera de um #metoo daquele lado), aceitar dinheiro num acordo com um dos gajos mais conhecidos do mundo (e mais ricos) é sinal de consentimento.
Da esquerda à direita, este «feminismo» fede a bafio e era útil que fosse colocado do lado da barricada em que está: dos opressores. Sejam eles mulheres ou homens.
13 Outubro, 2018 às
É só mais um risco Lúcia:
O que é que têm a ver «as operárias da Triumph» e quase todo o restante chorrilho de casuísticas com a cena da defesa das mulheres?
São mantras e ant-mantras sem dar qualquer sentido para um tema que nunca se discutirá com um mínimo de decência sem falar dos homens, que sempre aparecem nesta teatrada pseudoprogressista como alienígenas que nem merecem ser mencionados!!!
É a constante do corretês esquerdalho: tudo se trata pela instauração de privilégios a propósito de defesa da igualdade.
9 Outubro, 2018 às
vale a pena cá vir
6 Outubro, 2018 às
Está tudo aqui e muito simpaticamente. Eu teria incluído um ou outro palavrão que não me sai da cabeca.
Obrigada Kucia
5 Outubro, 2018 às
Muito bem escrito, é exactamente isto.
5 Outubro, 2018 às
Apoiado, Lúcia.
Excelente texto.
5 Outubro, 2018 às
Predestinados, de essência burguesa e maneira de pensar marcada pela ordem económica, sem compromisso e ação social com a classe trabalhadora, que há a esperar Lúcia?
Quanto mais aparentam 'autonomia e independência' (nome/palco), maior a impossibilidade por falsa consciência. #nãofiarneles
Como não somos eternos, alguma clarividência guiada por uma vontade de não servir é sempre importante.
Aos que vierem depois de nós
I
Realmente, vivemos tempos sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade.
Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.
Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranquilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?
É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: “Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!”
Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.
Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.
II
Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
III
Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.
Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.
E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.
– Bertolt Brecht (Tradução Manuel Bandeira)
4 Outubro, 2018 às
Muito bem, Lúcia.
João Pedro