Só mudam as moscas

Internacional

“Eu vou sempre defender o direito de Israel se defender e irei garantir que Israel terá sempre a capacidade de se defender.”

“Vamos parar de matar pessoas e apelar à paz.”

Estas duas frases, proferidas durante a atual campanha norte-americana que mais parece os prémios da música da MTV, mas em versão da Wish, ilustram bem o estado da política nos Estados Unidos. A primeira, dita por Kamala Harris durante a convenção democrata, poderia perfeitamente ter sido pronunciada por Donald Trump, o autor da segunda. O oposto também seria igualmente plausível.

Nos EUA, a promessa de mudança e inovação que outrora caracterizava a política foi há muito engolida por um bipartidarismo asfixiante. Os americanos veem-se obrigados a escolher entre dois partidos que, embora divergindo em retórica, frequentemente convergem nas suas políticas de fundo, especialmente em áreas críticas como a política externa, os interesses corporativos e a abordagem ao sistema penal. Este esgotamento de alternativas viáveis reflete um cenário de desesperança política, onde a verdadeira mudança parece sempre fora de alcance. As opções reduzem-se a uma escolha entre o ‘mal menor’, perpetuando o status quo e desmotivando uma participação cívica mais robusta e significativa.

Nos últimos tempos, temos assistido a debates virtuais acalorados sobre apoio ou não apoio, possível voto ou não voto, em um de dois candidatos que não são eleitos por nenhum português.

A esquerda, como de costume, toma partido, apoiando fervorosamente uma mulher, filha de imigrantes, que diz uma coisa e o seu contrário, desde que isso lhe garanta votos: interseccionalidade na figura, reação do mais vil nas políticas de fundo. Qual tem sido a política de imigração dos democratas nos últimos anos? Apenas no último ano, Biden deportou 700.000 imigrantes, com a conivência e aplauso de Kamala Harris (e de Trump, diga-se de passagem). Em termos de população sem-abrigo, os números bateram novamente recordes em 2023, com um aumento relativo de 12% na terra da libertinagem económica.

A política nos EUA funciona, por um lado, num registo semelhante aos apoios a clubes e, por outro, como um cartel de droga. Funciona como um clube porque assistimos a milhares de pessoas a partilhar o discurso de Oprah Winfrey como se de conteúdo substancial se tratasse; funciona como um cartel de droga porque se fecham os olhos aos movimentos monetários nas campanhas, vindos dos mais diversos sectores da economia. Trump está para Musk, tal como Harris está para Pritzker (o governador do Illinois, que na convenção andou a medir contas bancárias com Trump). Em Portugal, seria chocante ver um presidente de câmara ou um primeiro-ministro ostentar tal riqueza e chegar ao leme de um Estado ou nação. Se por um lado Trump acusa Kamala de defender “comunismo”, que na sua concepção deve ser algo do género: “comunismo é quando o Estado faz cenas”, por outro, Harris convida Ana Navarro – filha orgulhosa do grupo terrorista Contra, de Nicarágua – a discursar na convenção democrata para fazer um jogo de qual partido soma mais pontos de anti-comunismo primário.

As decisões políticas tomadas em Washington têm um impacto que se estende muito para além das fronteiras americanas. A história das intervenções militares dos EUA, justificada muitas vezes sob a bandeira da ‘democracia’ e ‘liberdade’, têm deixado um rastro de destruição e instabilidade em várias regiões do mundo, desde o Médio Oriente até à América Latina. Além disso, as políticas económicas dos EUA, muitas vezes impostas a outros países através de instituições como o FMI e o Banco Mundial, têm contribuído para o aumento das desigualdades globais. A realidade é que tanto Democratas como Republicanos partilham uma visão imperialista do mundo, onde a manutenção da hegemonia dos EUA se sobrepõe a qualquer consideração de justiça ou soberania para outras nações.

Nos EUA, a dicotomia Trump vs. Harris parece ofuscar a clareza de ideias e o pensamento crítico dos mais fervorosos ativistas de sofá. Quando se trata de intervenções na América Latina, como na Venezuela ou Nicarágua, no Médio Oriente, como no apoio a Israel ou na pseudo-ocupação do Afeganistão, no apoio a Milei ou a Bolsonaro, tanto importa que seja o burro ou o elefante que tenha ganho o maior número de boletins de voto. São milhões de pessoas condenadas à guerra, bélica ou económica, à pobreza e à destruição ambiental. E é no fundo com isto que estes ditos ativistas são cúmplices, alinham numa retórica de fogo-de-artifício e brilhantismo ao invés de colocar no centro da discussão os temas que realmente importam.

Tanto um como outro são tão cúmplices das guerras no exterior, como das guerras no interior: aos mais pobres, que têm de ter 2 e 3 trabalhos para conseguirem sobreviver; às populações racializadas, condenadas a alimentar o complexo industrial-prisional; às mulheres, que vêm os seus direitos à saúde e proteção na maternidade ameaçados; às vítimas de violência doméstica e de violação, sempre em cheque pelas reviravoltas legislativas; aos mais jovens, endividados até aos 40 para pagar os custos de ir para uma universidade pública. Viva o tokenismo de Kamala! Viva o conservadorismo de Trump!

Não, não precisamos de escolher entre um platinado misógino e uma mulher belicista. O apoio a qualquer um deles significará mais guerra; só muda quem assina os mísseis. Significará mais submissão aos interesses do imperialismo norte-americano e dos barões de Wall Street.

A História já nos mostrou bem o resultado de embarcar em campanhas de “ele não”. Há uma “esquerda” que ainda não percebeu isso, porque vive nas bolhas dos centros urbanos e no alto da sua superioridade intelectual. A democracia liberal, neste contexto de capitalismo, tenderá sempre ao desaparecimento das alternativas por princípio. Democratas ou Republicanos, PS ou PSD, Trabalhistas ou Conservadores, é tudo igual. O verdadeiro papel dos agitadores nas ruas deveria ser contrariar os vícios do sistema capitalista e afirmar uma alternativa. Veja-se o caso da França, onde a frente popular abdicou de ir a votos na segunda volta em círculos onde a extrema-direita poderia vencer. O que não conseguiram evitar foi a esmagadora maioria de votos efetivos que a extrema-direita conquistou.

É urgente que tanto nos EUA como na Europa se comece a construir alternativas políticas que vão além do tradicional jogo de poder entre a direita e a ‘esquerda’ liberal. Precisamos de partidos e movimentos que realmente representem os interesses da classe trabalhadora e dos marginalizados, que defendam uma redistribuição justa da riqueza, uma transição ecológica justa e uma política externa baseada no respeito mútuo e na cooperação.

A política não pode ser baseada no outro. Deve ser fundamentada nos princípios comuns de quem trabalha e na sua organização, sem medos. Seja nos EUA, em França, ou cá em Portugal. A unidade deve ser com quem trabalha, e com eles deve ser o compromisso de quem ambiciona um país de progresso, seja em que canto do mundo for.