Sócrates na prisão

Nacional

«O sistema vive da cobardia dos políticos, da cumplicidade de alguns jornalistas, do cinismo dos professores de Direito e do desprezo que as pessoas decentes têm por tudo isto” (…)”Prende-se principalmente para despersonalizar. Não, já não és um cidadão face às instituições, és um “recluso” que enfrenta as “autoridades”: a tua palavra já não vale o mesmo que a nossa. Mais do que tudo – prende-se para calar”»

Por partes:

•A 18, 19 e 20 de Julho de 2007, trabalhadores da Administração Pública fizeram uma vigília em frente à Assembleia da República, por ocasião da discussão em sessão plenária da Lei da Liberdade Sindical para a Administração Pública e do novo regime jurídico das carreiras, vínculos e remunerações dos trabalhadores da Administração Pública. Os trabalhadores comunicaram à Câmara Municipal de Lisboa e ao Governo Civil a realização da vigília. Forças policiais dirigiram-se inúmeras vezes ao local exigindo a identificação de todos os trabalhadores, abrindo as tendas que ali se encontravam, tentando confiscar a aparelhagem de som. Os trabalhadores resistiram, não se identificaram e ali permaneceram até à manhã do dia 20, onde concluíram a sua vigília com declarações de dirigentes sindicais e um “buzinão”.

• Em Janeiro de 2007, o Movimento de Utentes dos Transportes do Porto protesta contra as alterações introduzidas pelos STCP nas carreiras e percursos. Hoje, alguns dos manifestantes que foram identificados no protesto, enfrentam um processo criminal por alegadamente não terem cumprido o requisito do aviso prévio. O despacho de acusação contém a transcrição de todas as expressões proferidas, bem como o conteúdo dos panfletos distribuídos e das faixas ali presentes. Os dirigentes foram condenados.

• A 7 de Outubro de 2007, dirigentes sindicais são identificados pelas forças de segurança numa concentração em Guimarães, aquando da reunião do Conselho de Ministros. Por determinação do Governo Civil de Braga, o Ministério Público reabriu o processo judicial que teria já arquivado, estando os dirigentes a aguardar julgamento por suposta “manifestação ilegal”.

• A 11 de Outubro de 2007, estudantes do ensino secundário do distrito do Porto manifestaram-se por uma educação pública, gratuita e de qualidade. Em vários concelhos, centenas de estudantes foram abordados por agentes policiais a fim de serem identificados e “aconselhados” a não prosseguirem com a manifestação.

• A 24 de Janeiro de 2008, o dirigente sindical João Serpa é condenado a 75 dias de multa por ter participado numa manifestação em frente à empresa Pereira da Costa, onde os trabalhadores exigiam o pagamento dos salários em atraso.

• A 31 de Janeiro de 2008, estudantes do ensino secundário evocaram um dia nacional de luta pela escola pública, de qualidade e democrática, convocando concentrações e manifestações por todo o país. Abundam os relatos de tentativa de impedimento das manifestações por não estarem “autorizadas”. Dezenas de estudantes foram identificados.

Foram dezenas de episódios os que se passaram durante o mandato de Sócrates. Certamente ninguém se esquece da identificação de dirigentes sindicais da FENPROF em Castelo Branco ou do processo crime levantado contra militantes do PCP que entregaram um abaixo assinado em defesa da Segurança Social (com mais de cem mil assinaturas) na residência oficial do Primeiro Ministro.

E, finalmente, há um que por mais que o tempo passe, não vou esquecer.

Em 2012, 4 jovens (dois menores de idade) são detidos na esquadra das Olaias em Lisboa por pintarem um mural político. Ali permanecem quase seis horas. Elas foram despidas. Revistadas. Insultadas.

Contra todos foi levantado um processo crime que foi arquivado. A queixa deles à PSP e à Procuradoria Geral da República (com Pinto Monteiro nos comandos) não surtiu qualquer efeito. Tão pouco a queixa crime. Apenas a queixa à Inspecção Geral da Administração Interna resultou num processo disciplinar e suspensão de um dos agentes.

Sim, Sócrates tem razão. «Não, já não és um cidadão face às instituições, és um “recluso” que enfrenta as “autoridades”: a tua palavra já não vale o mesmo que a nossa. »

Mas este não é o seu caso. Isto foi o que Sócrates, Costa, Vieira da Silva, o PS, o PSD e o CDS criaram. Mas que só se aplica aos que não têm milhões para se defender e jornais para publicarem e denunciar o que se passa nas prisões portuguesas ou com o sistema judicial português. Não, não é o caso de Sócrates. Mas é o caso de um dirigente sindical da Função Pública que ainda esta semana recebeu uma acusação por ter participado numa manifestação de trabalhadores.