O corpo de John Brown

Internacional

Há precisamente 155 anos John Brown subia ao cadafalso na Virgínia por liderar a guerrilha anti-esclavagista que, ao contrário do movimento abolicionista burguês, defendia que a insurreição armada era o único caminho para a libertação.

Isolado mas idolatrado pelos escravos, amado mas mal armado com espingardas antiquadas, as chamadas “bíblias de Beecher”, a revolta que Brown encabeçou foi facilmente sufocada e representou a derradeira rebelião armada dos escravos nos EUA. O subsequente desenrolar da História outorgou aos esclavagistas do sul e aos seus financiadores do norte a gestão, pontuada por cedências, do fim da escravatura e da perpetuação do racismo. Na ausência de uma revolução anti-esclavagista, os negros foram historicamente destituídos da agência da sua própria libertação e confinados a reivindicar ao poder sem reivindicar o poder. Há claro, excepções: Fred Hampton, Malcolm X e, claro, John Brown, que, entre muitos outros, conheceram destino semelhante: pena de morte. Para todos eles sobraram canções como “O Corpo de John Brown” que reza assim: “O corpo de John Brown apodrece numa cova / mas o seu espírito continua a marchar”.

As recentes notícias provam que também os soldados da Confederação continuam a marchar. De costa a costa está aberta a caça aos negros e a todas as semanas se repetem os assassinatos. Em Phoenix, Rumain Brisbon de 34 anos, tinha saído de uma farmácia com um frasco de comprimidos. Um polícia branco pensou que era uma arma e matou-o. Em Nova Iorque, Eric Garner, de 43 anos, separou uma luta entre dois desconhecidos. Um polícia branco estrangulou-o até à morte à frente das câmaras dos transeuntes. Em Ferguson, Mike Brown, de 18 anos, estava no meio da rua. Um polícia branco trespassou-o de nove balas. Nenhum dos assassinos foi acusado de qualquer crime, reafirmando o velho axioma do sistema judicial americano: nos EUA matar pretos não é crime. Mas se a América não acusa os assassinos do povo, o povo acusa a América. É este o lema das mais de 500 manifestações em mais de 200 cidades que nas últimas duas semanas têm percorrido o coração do império.

Fundados sobre o genocídio de dezenas de milhões de nativos e construídos pelo trabalho forçado de outras dezenas de milhões de mulheres e homens raptados em África, o racismo faz parte do código genético dos Estados Unidos da América. A desumanização de que os afro-americanos foram alvo durante cinco séculos de chumbo e violência é a própria fibra de todas as instituições actuais e de que a polícia é o exemplo mais animalesco. As actuais polícias dos EUA são a herdeiras directas dos grupos de caçadores de escravos, dos grupos de linchamento e da influência do KKK. Não só as polícias dos EUA nunca foram submetidas a um saneamento que purgasse os elementos racistas, como a sua história permanece um dos muitos tabus da sociedade estado-unidense. Mais ainda, ao longo dos últimos trinta anos têm sido continuamente aprovadas leis que por um lado aumentam os poderes arbitrários da polícia para exercer a violência, parar, revistar e deter e que, por outro, estabelecem critérios racistas e xenófobos, de que é exemplo o stop-and-frisk.

Primeiro cooptada pela burguesia do norte durante a guerra civil e depois pelo Partido Democrata durante o movimento dos direitos civis, a luta dos afro-americanos foi reduzida no princípio dos anos 2000 ao seu mínimo histórico, num percurso descendente que acompanha em larga medida a evolução do movimento socialista internacional. Neste percurso, a eliminação política e física do Partido Pantera Negra pela CIA e pelo FBI é o ponto de inflexão fulcral. As tácticas adoptadas pelo governo federal, da introdução de droga nas comunidades negras ao assassinato à forja de propaganda anti-brancos assinada pelo PPN, provam a determinação dos EUA de manter os afro-americanos no seu lugar.

Qualquer afro-americano sabe o que é “o seu lugar”. Os jovens negros cedo aprendem o que é que desperta a parte reptiliana do cérebro dos brancos ricos. Trata-se de uma questão de sobrevivência: se os negros não compreenderem e dominarem aquilo que neles assusta os brancos, podem ser assassinados. Numa sociedade que se assemelha ao teste de Rorschach, brancos e negros vêm coisas diferentes no preto e no branco. Esta é porventura a consequência mais duradoura da segregação e da escravatura: os brancos são ensinados a temer os negros através de representações culturais que os colam a selvagens hiper-sexuais, violentos e preguiçosos. Para o afro-americano comum, isto significa ser parado pela polícia rotineiramente e, antes de abrir o porta luvas para tirar os documentos, perguntar, com as mãos no ar, se o podem fazer, não vá o polícia achar que é uma pistola e disparar.

Este racismo está profundamente institucionalizado nos EUA e dele depende o funcionamento da economia: em comparação à população branca, a taxa de desemprego dos negros e o seu nível de pobreza são 3 vezes mais elevados; a taxa de encarceração é 7 vezes superior; os afro-americanos vivem em média menos 10 anos que os brancos e têm o dobro da percentagem de abandono escolar. O modelo da plantação esclavagista sobrevive por obra destes números e o seu espectro não é tão etéreo como se possa pensar. É a própria Constituição dos EUA que autoriza a escravatura nos dias de hoje, curiosamente na mesma emenda que a proíbe. A 13º emenda é clara no único caso em que a escravatura é legal: como punição por um crime. Quem visite os EUA cedo se apercebe de como esta emenda constitucional serviu para perpetuar a plantação dentro das cadeias. Com efeito, são já 135 000 os estado-unidenses encarcerados em prisões privadas, onde se trabalha por 1$ por hora em fábricas e na agricultura. Os donos destas prisões são, na acepção mais restrita da expressão, donos de escravos.

A orfandade organizativa negra não impediu, no entanto, a manutenção de uma cultura política própria ou a capacidade de mobilização, em massa, contra episódios particulares de racismo e brutalidade policial, como em 1991 com o caso de Rodney King ou em 1968 depois do massacre de Orangeburg. Contudo, a onda de indignação que se está a levantar é parteira de originalidades importantes. Ao contrário de outros protestos quejandos tipicamente inorgânicos, as manifestações das últimas semanas demonstram uma bagagem de experiência organizativa formidável: foram estabelecidas pontes com o movimento sindical, foram criadas organizações funcionais, foram delineados objectivos, tácticas e estratégias, foram apontadas reinvidicações progressistas de carácter económico e social e, sobretudo, foi rejeitada taxativamente a cooptação pelo Partido Democrata, uma rejeição simbolizada na recepção hostil que aos tradicionais líderes negros deste Partido: Al Shapton e Jesse Jackson.

A incapacidade de cooptar movimentos como o Black Lives Matter está a deixar o Partido Democrata Nervoso, como ilustra a antipatia de Obama pelos manifestantes e o tratamento dos meios de comunicação social alinhados com o seu partido. Já o Partido Republicano está a preparar-se para a “guerra racial”. A Fox News, um dos meios de comunicação social mais à direita do mundo e também um dos principais nos EUA, tem-se referido aos manifestantes como “animais selvagens” com apelos ao uso de força letal em directo. Até agora, o movimento não sucumbiu à cooptação dos democratas nem às provocações e ameaças dos republicanos. Não sobram dúvidas de que o movimento de Ferguson aprendeu as lições essenciais do movimento Occupy: podemos estar perante o berço de renascimento da organização revolucionária negra.

Por outro lado, este movimento tem suscitado uma curiosa discussão sobre a violência. Os mesmos serventuários do sistema capitalista que demonstram a mais despudorada indiferença pelos constantes assassinatos às mãos da polícia rugem de indignação e clamam por vingança quando os motins destroem propriedade privada. Nesta alegoria do capitalismo, as lojas valem mais que as pessoas e a propriedade vale mais que a vida. É claro que numa comunidade pobre os objectos de consumo exercem uma atracção poderosa sobre os consumidores que não o podem ser. Numa sociedade em que a liberdade está directamente condicionada pelo poder de compra, adquirir bens de consumo, mesmo que quebrando a lei, adquire a aparência da libertação. Porém, estes episódios pontuais de oportunismo são de somenos importância: os manifestantes têm sido tão pacíficos quanto a polícia tem permitido e há vários vídeos em que se confirma que muitos dos incêndios foram ateados pela polícia. Há, no entanto, dois debates interessantes: a militarização da polícia e o direito a portar armas.

Quando, em 1950, os EUA decidiram invadir a Coreia, o presidente Truman não lhe chamou uma guerra, que exige a aprovação do Congresso, mas sim uma «acção policial». Cem dias depois do homicídio de Mike Brown, um jovem negro, pobre e desarmado, os EUA continuavam a aguardar, em calma tensa, pela decisão dos tribunais de acusar ou ilibar o assassino confesso, o polícia branco Darren Wilson. Durante cem dias um jurado investigou se um polícia deve ser julgado por matar, com doze tiros, um jovem com as mãos no ar, à frente de dezenas de testemunhas. Na antecipação vesperal do veredicto, o governador declarou o estado de emergência, foram chamados dezenas de milhares de militares da Guarda Nacional e as ruas foram ocupadas por tanques e polícias armados com material de guerra. Como em 1950, Obama não lhe chama uma guerra. E nem por isso deixa de o ser. Falamos de tanques, metralhadoras, helicópteros, caçadeiras, granadas incendiárias e soldados aos milhares. A militarização da polícia mostra bem a falácia liberal do “menos Estado, melhor Estado”. O capitalismo desfaz-se dos instrumento sociais do Estado reforçando sempre os repressivos.

A outra questão diz respeito ao direito aos civis deterem armas. Praticamente toda a esquerda branca estado-unidense, mesmo a revolucionária, defende, com razões óbvias, a limitação deste direito. Esta é, contudo uma causa pouco querida à maioria dos afro-americanos e um ponto de discórdia entre os comunistas afro-americanos e o resto da esquerda. Ainda há menos de cem anos e a poucos quilómetros de Ferguson, St. Louis assistia a um pogrom contra os operários afro-americanos. Num só dia, 150 pessoas foram linchadas, incluindo 39 crianças cujos crânios foram esmagados com pedras. Mais de metade destes crimes teve a assinatura da polícia. Ontem como hoje, as forças policiais estado-unidenses são o mais tenebroso e violento reduto do racismo e da segregação, mantendo em carne viva o legado dos linchamentos, assassinatos e perseguições. E ontem como hoje, os afro-americanos não esquecem nem baixam os braços. Na esteira dos Panterass Negras, são cada vez mais as organizações de auto-defesa negras e os clubes afro-americanos de open carry, que encorajam as comunidades agredidas pela polícia a patrulhar as ruas com armas à vista. Para além do pseudo-humanismo liberal que condena toda a violência e abomina as armas no abstracto, em muitas cidades norte-americanas estar armado é condição de sobrevivência quando se é negro. Mais ainda, no abstracto e por princípio, os comunistas devem defender mecanismos de manter o povo armado.

A realidade está à vista de todo o mundo: nos EUA persiste a segregação legal, a discriminação institucional e o racismo estrutural. Esta doença não irá desaparecer com panaceias verbais nem paliativos legais. O racismo (enquanto actual opressão sistémica) nasceu com o capitalismo e não poderá desaparecer enquanto um homem explorar outro homem. O primeiro passo, no entanto, é muito menos ambicioso: urge aos estado-unidenses encetar um debate histórico sobre o conceito de raça, as causas da discriminação, a acção da polícia e a compensação pela escravatura. Urge, numa palavra, acusar a América.

Como há mais de 150 anos John Brown compreendeu, o racismo estrutural só se resolve com uma transformação radical. Tinha afinal de contas razão, a canção sobre o seu corpo: “O corpo de John Brown apodrece numa cova / mas o seu espírito continua a marchar / A mochila de John Brown está bem presa às suas costas / e o seu espírito continua a marchar”.

Todas as imagens retiradas de “The Hunted Slaves” de Richard Ansdell